quinta-feira, 19 de abril de 2018

Mais de trinta anos de bons serviços

 

Rua Formosa, centro de São Paulo. Poucos sabem onde fica. Pudera, todo o seu lado par foi desapropriado e demolido. Virou uma rua com poucos prédios, todos do mesmo lado, com vários trechos absorvidos por praças e calçadões de pedestres. Rua Formosa, esquina com Avenida São João. O prédio amarelo dos Correios, majestosa construção tombada, agora centro cultural, tem quatro andares de janelas apreciando as formosas do outro lado da esquina...

 

Mil novecentos e noventa, janeiro. Começo no meu novo emprego, no Martinelli, famoso prédio rosa que domina a região. Das janelas do vigésimo segundo andar tenho ampla visão da Avenida São João, até ela sumir sob o Minhocão. Na esquina mais próxima, o prédio dos Correios se sobressai, majestoso, ocupando meio quarteirão. Um colega de trabalho chama a minha atenção para o outro lado da esquina: construções baixas, antigas e deterioradas que compõem a tal Rua Formosa. Nos Correios, naquele tempo ainda ativo e importante para as comunicações paulistanas, um frenético movimento de pessoas entrando e saindo do prédio, despachando cartas, telegramas e pacotes, retirando encomendas.  Do outro lado da rua, a vida passa num ritmo mais calmo, mulheres sem pressa observam o movimento postal, sentadas nos tamboretes dos bares, encostadas nas fachadas.... Talvez influenciados por tanta placidez, muitos homens que ali circulam relaxam, diminuem seus passos, adiam seus compromissos, observam as solícitas moças, tomam uma cerveja gelada, uma pinga para o santo. Na distância, vejo vários deles conversarem com elas, sempre receptivas. Alguns pares se entendem, caminham juntos e somem por uma discreta porta situada entre os bares, acesso ao segundo andar, às modestas alcovas do amor imediato.  O colega informa que o George vai lá três vezes por dia, paga o quartinho por mês, com desconto de cliente especial. Pergunto se ele é solteiro: não, casadíssimo! E gosta da mulher!! Mas gosta mais de variar, vai com todas, mas o importante é o preço – cincão – e a disponibilidade imediata. Já e agora!

 

Hora do almoço, os colegas convidam-me para almoçar na Ipiranga. Passamos rente aos bares da esquina, as moças agora exibem ostensivamente seus dotes físicos, são ativas na caça ao cliente, fazem promessas de prazeres paradisíacos. Conseguimos superar as agressivas ofertas e seguimos em frente, incólumes. Eles informam que são as mais baratas da região, fazem programa até por cincão, George conhece todas, vai lá três vezes ao dia. Uau!, digo eu, o cara é animal!!! Eles indagam-me: como ele faz no fim de semana?

 

Na volta do almoço, óculos escuros, caminho pelo calçadão da São João, a uma distância segura das trabalhadoras, o que me permite observá-las melhor sem ser assediado. Altas, baixas, gordas, magras, peitudas, tábuas, novas, velhas, brancas, negras, mulatas, louras, morenas, tem para todos os gostos e precisão. A honestidade impera: fantasias realizadas ou seu dinheiro de volta.

 

Dia após dia elas estão lá, desde o começo da manhã até à noite, de segunda a domingo, com sol, chuva, frio, verdadeiro serviço de utilidade pública. Afinal, dizem que é a profissão mais antiga do mundo. Uma prefeita começa obras no Vale do Anhangabaú, elas resistem, clientela aumenta com os operários. George morreu de aids, algumas delas talvez tenham tido o mesmo triste fim, bem como anônimos clientes. Mas o ponto resiste, sempre há trabalhadoras disponíveis, sempre há clientela. Afinal, cincão é uma proposta irresistível.

 

Mudo de emprego, vou para longe. Depois de anos, retorno à mesma janela: imutáveis o prédio dos Correios e as formosas de vida fácil. Fácil? Vai lá fazer o trabalho delas, atendendo a todos que passam, sem discriminar ninguém...

 

Tempos depois, um prefeito resolve higienizar a região, desapropriando os predinhos deteriorados da Rua Formosa. Espaço para outra praça e um centro cultural, alega. Com as demolições, somem os bares, a porta do amor, as meninas e os clientes. Como faria George agora? O prédio dos Correios, invejoso e obsoleto, também entra em obras, também quer ser centro cultural.

 

Dois mil e dezessete, março, fim do dia. Depois de várias trocas de emprego, estou de volta à região da Ipiranga. Saio do Largo do Paissandu e caminho pela São João com destino ao Metrô São Bento. Logo no começo, uma feira do "rolo": um monte de homens aglomerados, com sacolas, mochilas, pacotes, objetos, conversando nervosamente entre si, em escambos rápidos. No calçadão, hippies fora de época expõem seus produtos no calçadão. Vários prédios estão invadidos por movimentos em prol de habitação popular. A reforma do prédio dos Correios seguiu em ritmo de Sedex e o centro cultural foi inaugurado, brilhando sobre a avenida. Um bar toca música alta, espalha parcas cadeiras vermelhas pela calçada, todas vazias. As obras prometidas por aquele longínquo prefeito vão em ritmo lento, lentíssimo, a esquina com a Rua Formosa está tomada por tapumes multicoloridos. Chego mais perto e vejo: as formosas voltaram, em menor quantidade, é certo, e mais recatadas, como Temer gosta. Escoradas nos tapumes, oferecem discretamente seus serviços. Se há oferta, é porque haverá clientes, agora não mais usuários dos Correios. Não vejo a porta do amor. Onde se dão as conjunções carnais? Em quartinhos dos prédios invadidos? Na penumbra dos cinemas "adultos" da região? Será que ainda fazem por cincão ou a inflação elevou para dez, vinte reais o programa rápido? Daria para barganhar três por cinquenta? O risco diminuiu, não se morre de aids, há coquetéis que prolongam a vida. George iria gostar...

 

Caminho ao meu destino, mas um grafite na empena cega de um prédio, bem acima das moças, atrai a minha atenção: um rosto metade mulher jovem e bonita, metade caveira, pescoço ornado por colar de caveirinhas. Na mão cadavérica um coração aberto expondo um relógio. Vixe!!! Seria um alerta sobre o destino das moças e dos seus clientes dos encontros rápidos?? O que diria George??


José FRID


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