terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Mariza, Mariza....

Uma ondinha marota tomou um impulso inesperado e lambeu seus tênis novos azuis. Surpreso, recuou e caiu sentado, cravando a garrafa de champagne na areia. "Ano vinte e um, século vinte e um. Fui longe, porra! Setenta anos! Setenta! Venci, Mariza não, Mariza, meu amor!!!" Chora, soluça, deixa-se cair de costas na areia, sem largar a garrafa. A Viúva Clicquot espera para consolar o novo viúvo. Ela entende disso há duzentos anos.

Ele fecha os olhos, pensamentos desconexos cruzam sua mente. Deixa-se envolver por lembranças de momentos felizes, tristes, alegres, angustiantes, o álcool não permite que controle, ordene suas memórias. Quanto tempo deitado? Qual o tempo do desesperado?

"Será que já podemos pular as sete ondas?" "Melhor esperar a meia-noite, amor. Vem cá, abaixa a máscara e me dá um beijinho." A conversa do jovem casal penetra no cérebro de Eduardo e freia a rotação da sua mente que, como uma roleta, vai girando devagar, mais devagar, parando, até que a bolinha branca caia na casinha da palavra "meia-noite".

"Porra, é réveillon!" berra Eduardo, sentando-se e assustando os namorados. Os olhos e ouvidos dele procuram luzes e o espoucar de fogos, mas apenas captam o marulhar e os reflexos da lua cheia. As máscaras nos queixos do casal mostram a realidade: não haverá fogos nem dois milhões de pessoas em Copacabana. Está completamente sozinho nesta noite, sem Mariza, filhos e netos. Toma um gole de champagne, surgem lembranças do réveillon passado, todos juntos, abraçados, felizes, irmanados na multidão maravilhada pelas mil cores que iluminam o céu. "Quem imaginaria o ano confuso que atravessariam?"

Uma onda desgarrada quebra com violência e suas águas correm ligeiras areia acima, encharcando seus tênis azuis, a bermuda branca e a cueca amarela, cores da sorte, escolhidas pela mulher. "Puta que pariu! Porra! Que merda!" A revolta logo passa, não tem para onde ir, ali é seu lugar, diante do mar, das cinzas de Mariza. Um gole longo de tirar o fôlego traz lembranças dos últimos dias. "Mariza, Mariza", ele berra para o mar. O casal se afasta, intimidado por tanta tristeza. São jovens, precisam acreditar no futuro. Eduardo, ainda sentado, encharcado, chora copiosamente. "Mariza, meu amor!" murmura para o oceano. O velório rápido, sem abraços, sem consolo, todos temendo-o, possivelmente contaminado, o corpo de Mariza lacrado num caixão sem flores, seus filhos olhando-o de longe, talvez pensando em estar de volta àquela capela, com Eduardo no lugar de Mariza. Na hora da dispersão das cinzas de Mariza naquele mar, a dura conclusão: Letícia matara a avó ao buscar consolo para a traição de Gustavo, quebrando um isolamento de meses.

"Por que ele escapara? Por que o vírus não o quis? Mariza mais saudável do que ele…" A cabeça dói com esses pensamentos. Tanto tempo isolado com a mulher, todos os cuidados, tudo perdido com a visita da neta, desesperada com a traição do namorado. Mariza não pode negar consolo e perdera a vida. Amor e morte. Como viver sozinho depois de mais de quarenta anos juntos? Como sobreviver sozinho na pandemia?

No silêncio da noite, sua mente volta a girar rapidamente, recuperando cenas: o dia que a conheceu na praia, aquela mesma que recebeu suas cinzas; a paquera ao longo do verão, a base de mate com limão e biscoito Globo; o réveillon no centro espírita armado à beira-mar, a mãe de santo profetizando um casamento longo; eles e as crianças acompanhando os fogos sendo lançados da areia, bem pertinho deles, cada morteiro lançado paralisando os corações por breves segundos; os fogos vistos do navio na comemoração das bodas de prata; o deslumbramento dos netos com as luzes no céu...

"Mariza, Mariza, meu amor" grita ele correndo em direção ao mar, que o acolhe por inteiro em suas águas escuras, no exato momento em que tímidos fogos avisam que já é dois mil e vinte e um.Uma ondinha marota tomou um impulso inesperado e lambeu seus tênis novos azuis. Surpreso, recuou e caiu sentado, cravando a garrafa de champagne na areia. "Ano vinte e um, século vinte e um. Fui longe, porra! Setenta anos! Setenta! Venci, Mariza não, Mariza, meu amor!!!" Chora, soluça, deixa-se cair de costas na areia, sem largar a garrafa. A Viúva Clicquot espera para consolar o novo viúvo. Ela entende disso há duzentos anos.

Ele fecha os olhos, pensamentos desconexos cruzam sua mente. Deixa-se envolver por lembranças de momentos felizes, tristes, alegres, angustiantes, o álcool não permite que controle, ordene suas memórias. Quanto tempo deitado? Qual o tempo do desesperado?

"Será que já podemos pular as sete ondas?" "Melhor esperar a meia-noite, amor. Vem cá, abaixa a máscara e me dá um beijinho." A conversa do jovem casal penetra no cérebro de Eduardo e freia a rotação da sua mente que, como uma roleta, vai girando devagar, mais devagar, parando, até que a bolinha branca caia na casinha da palavra "meia-noite".

"Porra, é réveillon!" berra Eduardo, sentando-se e assustando os namorados. Os olhos e ouvidos dele procuram luzes e o espoucar de fogos, mas apenas captam o marulhar e os reflexos da lua cheia. As máscaras nos queixos do casal mostram a realidade: não haverá fogos nem dois milhões de pessoas em Copacabana. Está completamente sozinho nesta noite, sem Mariza, filhos e netos. Toma um gole de champagne, surgem lembranças do réveillon passado, todos juntos, abraçados, felizes, irmanados na multidão maravilhada pelas mil cores que iluminam o céu. "Quem imaginaria o ano confuso que atravessariam?"

Uma onda desgarrada quebra com violência e suas águas correm ligeiras areia acima, encharcando seus tênis azuis, a bermuda branca e a cueca amarela, cores da sorte, escolhidas pela mulher. "Puta que pariu! Porra! Que merda!" A revolta logo passa, não tem para onde ir, ali é seu lugar, diante do mar, das cinzas de Mariza. Um gole longo de tirar o fôlego traz lembranças dos últimos dias. "Mariza, Mariza", ele berra para o mar. O casal se afasta, intimidado por tanta tristeza. São jovens, precisam acreditar no futuro. Eduardo, ainda sentado, encharcado, chora copiosamente. "Mariza, meu amor!" murmura para o oceano. O velório rápido, sem abraços, sem consolo, todos temendo-o, possivelmente contaminado, o corpo de Mariza lacrado num caixão sem flores, seus filhos olhando-o de longe, talvez pensando em estar de volta àquela capela, com Eduardo no lugar de Mariza. Na hora da dispersão das cinzas de Mariza naquele mar, a dura conclusão: Letícia matara a avó ao buscar consolo para a traição de Gustavo, quebrando um isolamento de meses.

"Por que ele escapara? Por que o vírus não o quis? Mariza mais saudável do que ele…" A cabeça dói com esses pensamentos. Tanto tempo isolado com a mulher, todos os cuidados, tudo perdido com a visita da neta, desesperada com a traição do namorado. Mariza não pode negar consolo e perdera a vida. Amor e morte. Como viver sozinho depois de mais de quarenta anos juntos? Como sobreviver sozinho na pandemia?

No silêncio da noite, sua mente volta a girar rapidamente, recuperando cenas: o dia que a conheceu na praia, aquela mesma que recebeu suas cinzas; a paquera ao longo do verão, a base de mate com limão e biscoito Globo; o réveillon no centro espírita armado à beira-mar, a mãe de santo profetizando um casamento longo; eles e as crianças acompanhando os fogos sendo lançados da areia, bem pertinho deles, cada morteiro lançado paralisando os corações por breves segundos; os fogos vistos do navio na comemoração das bodas de prata; o deslumbramento dos netos com as luzes no céu...

"Mariza, Mariza, meu amor" grita ele correndo em direção ao mar, que o acolhe por inteiro em suas águas escuras, no exato momento em que tímidos fogos avisam que já é dois mil e vinte e um


José FRID

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