Foi numa noite de verão, enquanto caminhava pelo distrito de Fukagawa, que sua atenção foi atraída por um pé feminino de brancura deslumbrante desaparecendo por trás das cortinas de um palanquim. Um pé pode transmitir tantas variações de expressão quanto um rosto, e este pé branco feminino pareceu a Seikichi a mais rara das jóias. Os dedos dos pés perfeitamente formados, as unhas iridescentes, o calcanhar arredondado, a pele, tão lustrosa como se tivesse sido lavada durante séculos pelas águas límpidas de algum riacho de montanha - tudo era um pé de perfeição absoluta destinada a agitar o coração. de um homem e pisotear sua alma.
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quarta-feira, 13 de março de 2019
quarta-feira, 13 de setembro de 2017
[COM O FOGO NÃO SE BRINCA]
Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo
Adília Lopes in Um Jogo Bastante Perigoso (1985)
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sexta-feira, 7 de julho de 2017
A Selva
1
Adília
chora
como
uma Madalena
2
Adília
lê
treslê
a Bíblia
3
Adília
a idiota
da família
afoga-se
em chá de tília
4
Adília
memorabilia
Combray
Penamacor
Cortam-me
ou esticam-me
braços
e pernas
conforme
a cama
(a cama
é a medida)
A medida porém
é a Senhora da Aparecida
Também eu
fui Procrustes
tive
duas camas
os outros as outras
nunca
estavam
certos
Errei (pequei)
estou arrependida
(antes não fodida
que mal fodida)
Adília Lopes
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terça-feira, 13 de junho de 2017
OP ART
"Buen vestido no haze ledos los tristes" Gil Vicente – Dom Duardos
I
A poetisa é Marta
e é Maria
mas a máquina de costura
encravou
e Jesus hoje não passou
2
Porque não deixa de escrever
e passa a dizer Tchau?
3
A minha biografia foi-se
como leite derramado
entre Tridim-M e Tridim-T
4
Tenho 32 anos
nunca fui a um enterro
e também nunca fui
ao Algarve
5
Se o bom verso
Como o bom vestido
Não alegra as poetias
Ajuda bastante
6
Nasci em Portugal
Não me chamo Adília
7
Sou uma personagem
de ficção científica
escreve para me casar
8
Que morra Marta
mas que como Maria
morra farta
Adília Lopes in: Antologia [Clube da poetisa morta]. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 162-163)
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domingo, 11 de junho de 2017
A SALADA COM MOLHO COR-DE-ROSA
1.
Conheci a Magda na praia
na praia é uma metáfora obscena
que como as outras metáforas obscenas
pode ser usada quer como eufemismo
quer como insulto
conheço por experiência própria
os dois usos da expressão
na praia
2.
Eu gosto de me fazer passar
por uma rapariga ordinária
a Magda era mesmo ordinária
a princípio era isto o que mais
me atraía nela depois foi isto
o que sobretudo me desgostou nela
3.
As minhas relações com a Magda
de deliciosas passaram a promíscuas
aconteceu-me
o que me tinha acontecido
quando comi salada com molho cor-de-rosa
ao princípio
a salada era deliciosa por causa do molho
depois comecei a perceber
que era mil vezes melhor
estar a comer os vegetais
sem molho do que com molho
o molho impedia-me de comer os vegetais
com gosto
desgostava-me da vida
4.
Vivia com a Magda
num quarto de duas camas
quando eu chegava ao quarto
a Magda estava deitada na minha cama
numa posição de Maja desnuda
mas vestida
o que ainda era pior
outras vezes encontrava-a
sentada na minha cadeira
a folhear os meus livros
e a chupar os dedos
5.
A Magda era uma intrusa
depois de ter sido um ser envoûtant
quer como intrusa
quer como ser envoûtant
ela era para mim
uma fonte de perturbação
6.
Eu não era casta
não porque me entregasse
com a Magda
(que era aliás uma praticante profissional do safismo)
a um prazer que alguns dizem vicioso
(só lhe toquei uma vez
sem querer
e pedi-lhe automaticamente desculpa)
mas porque com a Magda
não tinha prazer nenhum
7.
(Acho que o prazer é casto
o que não é casto
é o simulacro do prazer
ou a renúncia ao prazer
tanto o simulacro
como a renúncia)
8.
Um dia voltei ao quarto
e a Magda tinha desaparecido
sem deixar marcas
custou-me não encontrar
o chiqueiro próprio da Magda
os meus cigarros fumados
o meu cinzeiro cheio de beatas
sujas de bâton
(que me faziam lembrar
dentes cuspidos após uma briga)
o Las Moradas
antes do Calculus I
na minha estante
quando eu me habituei
a pôr esses livros por ordem inversa
9.
O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido
Adília Lopes in Lisboa: Mariposa Azual, 2000. pp. 44-47)
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sexta-feira, 9 de junho de 2017
[NÃO GOSTO TANTO]
Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito de seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever.
Adília Lopes
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terça-feira, 6 de junho de 2017
A POOR YOUNG SHEPHERD
Fui uma menina demasiado protegida
a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
às meninas que vinham brincar comigo
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Ségur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicoteadas
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que o Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feito um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir à praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia
do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir
da primeira vez que saí de casa
fui atingida por uma bala perdida
em tempos de paz
que duraram pouco
quando ouvi na rádio as rajadas da metralhadora
que certa facção tinha postado
nos estúdios das emissoras regionais
para fingir que havia uma revolução na capital
e assim justificar os fuzilamentos
do dia seguinte
acreditei que essa facção
agia por motivos maternais
ainda hoje as páginas que mais me agradam
são aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
e se falo ao telefone com um namorado
tenho medo de um beijinho como de uma abelha.
Adília Lopes in Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000. pp. 114-115
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sábado, 3 de junho de 2017
METEOROLÓGICA
para o José Bernardino
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
Adília Lopes in Antologia [Clube da poetisa morta]. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 165-166)
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quinta-feira, 1 de junho de 2017
Primeiro amor
gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado os Pestíferos de Java
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele fina
devia ter uma letra muito melhor que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita
Adília Lopes
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segunda-feira, 29 de maio de 2017
[MINHA AVÓ E MINHA MÃE]
[MINHA AVÓ E MINHA MÃE]
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
Adilia Lopes in A Pão e Água de Colónia (1987)
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
Adilia Lopes in A Pão e Água de Colónia (1987)
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quarta-feira, 12 de abril de 2017
Arte Poética - Adília Lopes
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'
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quarta-feira, 5 de abril de 2017
Os Amantes - Adília Lopes
Os amantes
fecham-se
um no outro
(como os punhos
do bebé
que dorme
no berço
e no útero
da mãe
como as caras
dos ícones
no escuro
das igrejas)
Adília Lopes, in 'Sete Rios Entre Campos'
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sexta-feira, 31 de março de 2017
Para um Vil Criminoso - Adília Lopes
Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe
Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe
Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'
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sábado, 25 de março de 2017
Lisboa - Adília Lopes
Cidade branca
semeada
de pedras
Cidade azul
semeada
de céu
Cidade negra
como um beco
Cidade desabitada
como um armazém
Cidade lilás
semeada
de jacarandás
Cidade dourada
semeada
de igrejas
Cidade prateada
semeada
de Tejo
Cidade que se degrada
cidade que acaba
Adília Lopes, in 'Poemas Novos'
semeada
de pedras
Cidade azul
semeada
de céu
Cidade negra
como um beco
Cidade desabitada
como um armazém
Cidade lilás
semeada
de jacarandás
Cidade dourada
semeada
de igrejas
Cidade prateada
semeada
de Tejo
Cidade que se degrada
cidade que acaba
Adília Lopes, in 'Poemas Novos'
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sexta-feira, 28 de março de 2008
MINHA AVÓ E MINHA MÃE
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficamos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
Adília Lopes, escritora portuguesa
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