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domingo, 13 de maio de 2012

Extrair


ex
trair
do tempo improvável, do improvável,
de suas maquinações, ações,
do ato regular que se dissipa em método, todo
hábito que habito, repito,
da meta inalcançável que me fita, cripta
do incontável número dos dias vividos, idos,
da inumerável cota dos dias por vir, ir,
da engrenagem que não para, dispara,
sacode o chão que piso, piso
de um ônibus em movimento, momento
em que me agarro ao cilindro de metal do alto
-
a vida
-
não a que resta ainda, indo,
mas a que transborda de cada ar expirado, inspirado,
até que arrebente, vente.



Arnaldo Antunes 
in "Ilustríssima" - Folha de São Paulo, 6 de maio de 2012

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Mancha



toda mancha
tem o desenho de uma
poça
com o contorno de uma
rocha
toda mancha
roxa
na pele
ou no papel
onde uma gota
de sangue
se derrama
no lenço
ou no lençol
da cama
como
mangue
ou ilha
numa foto 
aérea
quase 
esfera
filha 
imprecisa
de orla
que o
acaso
forja
fora
do destino
sibilino
:
forma
:


Arnaldo Antunes in "Ilustríssima" - Folha de São Paulo, 6 de maio de 2012

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Casa é Sua


Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar




Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar



Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar



Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal



A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora



A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio



Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar



Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar



Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar



Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado



A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora



A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio


 

Arnaldo Antunes



terça-feira, 3 de maio de 2011

Socorro



Socorro, não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar, nem pra rir
Socorro, alguma alma, mesmo que penada
Me entregue suas penas
Já não sinto amor, nem dor, já não sinto nada
Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate, nem apanha
Por favor, uma emoção pequena
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta
Em tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
Socorro, alguma rua que me dê sentido
Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada
Socorro, eu já não sinto nada, nada





Arnaldo Antunes e Alice Ruiz

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

CULTURA


O girino é o peixinho do sapo.
O silêncio é o começo do papo.
O bigode é a antena do gato.
O cavalo é o pasto do carrapato.
O cabrito é o cordeiro da cabra.
O pescoço é a barriga da cobra.
O leitão é um porquinho mais novo.
A galinha é um pouquinho do ovo.
O desejo é o começo do corpo.
Engordar é tarefa do porco.
A cegonha é a girafa do ganso.
O cachorro é um lobo mais manso.
O escuro é a metade da zebra.
As raízes são as veias da seiva.
O camelo é um cavalo sem sede.
Tartaruga por dentro é parede.
O potrinho é o bezerro da égua.
A batalha é o começo da trégua.
Papagaio é um dragão miniatura.
Bactéria num meio é cultura.

Arnaldo Antunes in O Globo, 26/07/2009 via Caquis Caídos de Adriana Lisboa

domingo, 31 de janeiro de 2010

CHACINA


Acertaram aquele e o amigo dele

O de blusa listrada com a namorada

O menor correu, seu irmão morreu

O seu pai sumiu, nunca mais se viu

O de short azul, pasto de urubu

Camisa vermelha sobre o peito nu

Dois estão feridos mais sete escondidos

E os outros seis já viraram três

Quem tava do lado também foi queimado

Quem pode escapar não pode falar

Ninguém teve pena, ninguém teve dó

Daquela família só ficou a avó

E daquele corpo, osso dente e unha

Ninguém quer o troco, ninguém testemunha

Não deu na TV, nem deu no jornal

Não foi pra cadeia, nem pro hospital

Não teve caixão, não teve funeral

E TEM MUITA GENTE QUE ACHA NORMAL


Poema de Arnaldo Antunes. Música de Edvaldo Santana. Gravado no CD Reserva de Alegria.