Mostrando postagens com marcador Katherine Mansfield. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Katherine Mansfield. Mostrar todas as postagens

domingo, 27 de março de 2022

Amores

...Eu o amava! Como o amava! Talvez não importa tanto assim o que se ama nesse mundo. Mas é preciso amar algo. Claro que sempre tive minha casa e meu jardim, embora, por alguma razão, nunca foram o suficiente. As flores reagem maravilhosamente, porém não têm empatia. Então, amei a estrela da tarde. Parece tolice? Costumava ir ao quintal depois do pôr do sol e esperar até que ele começasse a brilhar acima do eucalipto sombrio. Costumava sussurrar: "Aí está você, meu querido". E nesse exato momento parecia brilhar só para mim. Parecia entender essa... algo semelhante à nostalgia, mas que não é nostalgia. Ou lamento - tem mais a ver com lamento. Mas lamentar o quê? Tenho muito mais a agradecer.

... Mas, quando ele entrou na minha vida, esqueci da estrela da tarde; não precisava mais dela. Foi estranho. Quando o chinês apareceu à porta vendendo pássaros e levantou-o na sua gaiola minúscula, em vez de revoar, revoar, como os pobrezinhos dos pintassilgos, ele soltou um piozinho fraco e eu me peguei dizendo, como já havia dito à estrela acima do eucalipto: "Aí está você, meu querido". A partir desse momento, ele era meu.


Katherine Mansfield in A mosca e outras histórias, Lafonte, tradução de Otavio Albano, pág. 62.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Frésia feliz!


Uma grande abelha, uma camarada peluda e dourada, rasteja para dentro de uma frésia e a delicada flor se curva, oscila, balança; e quando a abelha voa para longe, continua a tremular como se risse. Flor despreocupada e feliz!

Katherine Mansfield in A mosca e outras histórias, Lafonte, tradução de Otavio Albano, pág. 58.

sábado, 28 de agosto de 2021

Pular de alegria...

Ontem, no meu quarto, no andar superior, de repente tive vontade de dar um pulinho – há dois anos não dou um pulinho – você sabe, aquele, do tipo 'pulo de alegria'. Eu estava com medo. Fui até a janela e, por segurança, me agarrei à soleira. Depois, fui até o meio do quarto e pulei. […] Foi uma experiência maravilhosa.

Katherine Mansfield em carta ao marido, de 10 de novembro de 1919, relatando um dos raros momentos em que se sentia tomada por uma súbita e inesperada alegria.


quinta-feira, 26 de junho de 2008

A mosca



O chefe pegou uma caneta, tirou a mosca do tinteiro e jogou-a num pedaço de mata-borrão. Por uma fração de segundo ela ficou imóvel na mancha escura que se espalhava à sua volta. Depois as patas dianteiras agitaram-se, firmaram-se, e, erguendo seu corpinho encharcado, ela deu início à imensa tarefa de limpar a tinta de suas asas. Por cima e por baixo, por cima e por baixo, uma pata passava ao longo de uma asa como a pedra de afiar passa por cima e por baixo da foice. Depois houve uma pausa, quando a mosca, parecendo ficar nas pontas dos pés, tentou abrir primeiro uma asa e depois a outra, Finalmente conseguiu e, sentando-se, começou, como um minúsculo gato, a limpar a cara. Agora era possível imaginar que as patinhas dianteiras esfregavam-se ligeiramente uma contra a outra, alegre. O horrível perigo fora superado; ela escapara; estava pronta para a vida novamente.

Justamente nesse instante, porém, o chefe teve uma idéia. Mergulhou a caneta de novo na tinta, apoiou o pulso grosso no mata-borrão e, quando a mosca experimentava as asas, uma gota grande e pesada caiu. O que podia ela fazer diante disso? O quê, realmente! A pequena indigente pareceu absolutamente intimidada, atordoada, com medo de se mexer por causa do que aconteceria em seguida. Mas depois, como se penosamente, arrastou-se para frente. As patas dianteiras agitaram-se, firmaram-se, e, desta vez mais lentamente, a tarefa começou do começo.

Mas ele é um diabinho destemido, o chefe, e sentiu uma real admiração pela coragem da mosca. Era assim que se devia enfrentar as coisas; aquele era o espírito correto. Nunca desanime; era somente uma questão de… Mas a mosca terminara de novo sua laboriosa tarefa, e o chefe teve o tempo exato para encher de novo a caneta e sacudir mais uma gota escura bem em cima do corpo recém-limpo. Como seria desta vez? Seguiu-se um penoso momento de suspense. Mas veja, as patas dianteiras agitavam-se de novo; o chefe sentiu uma onda de alívio. Debruçou-se sobre a mosca e disse-lhe ternamente: "Sua sem-vergonha astuta." E teve mesmo a brilhante idéia de soprar sobre ela para ajudar o processo de secagem. Apesar disso, havia algo de tímido e fraco em seus esforços agora, e o chefe decidiu que esta seria a última vez, enquanto mergulhava a pena no fundo do tinteiro.

Foi. A última gota caiu sobre o mata-borrão embebido, e a mosca enlameada ficou ali imóvel. As patas traseiras estavam coladas ao corpo; as dianteiras não podiam ser vistas.

"Vamos", disse o chefe. "Mexa-se!" E instigou-a com a caneta -em vão. Nada aconteceu ou poderia acontecer. A mosca estava morta.

O chefe ergueu o cadáver sobre a ponta do corta-papel e jogou-o na cesta de lixo. Mas um sentimento tão opressivo de desolação tomou conta dele que ficou positivamente amedrontado. Avançou e tocou a campainha para chamar Macey.

"Traga-me mata-borrão novo", disse severamente, "e rápido." E enquanto o velho cão se afastava pôs-se a se perguntar sobre o que estivera pensando antes. Fora isso? Fora… Puxou o lenço e passou-o dentro do colarinho. Não conseguiu se lembrar por mais que tentasse.

A Mosca



Katherine Mansfield

Quantas vezes nós agimos assim, sem perceber?

E quase sempre sem remorsos!

José FRID