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domingo, 27 de março de 2022

A vida é assim....

Mudei e meus filhos ficaram amigos das crianças do prédio. A amizade dos pequenos virou a convivência dos pais. Jonas e da Soraya estavam na nossa faixa de idade. As crianças brincavam no quarto, os adultos na sala bebendo, comendo e conversando sobre tudo e o nada. Amizade forte, de deixar os filhos com um casal para o outro fazer uma viagenzinha romântica. Tínhamos o mesmo padrão econômico. A exceção era brindar um bom negócio fechado por Jonas com champagne francês, que ele dizia ser um prêmio dado pelo patrão.

Um dia Jonas perguntou se eu poderia guardar um presente que comprara para Soraya, surpresa de aniversário de casamento. Concordei e recebi um grande pacote, envolto em papel cheio de corações. Coloquei no maleiro e esqueci.

Meses depois, Jonas aparece na televisão sendo preso por tráfico de drogas, líder de quadrilha que exportava cocaína para a Europa e importava armas russas. Lembrei do embrulho dos corações. Tereza ligou para Soraya pelo interfone, mas não havia mais ninguém. Não tivemos coragem de ligar no celular.

A vida é assim.

Eu poderia ter mudado para o prédio ao lado do primeiro. Meus filhos fariam outras amizades e eu não conheceria Jonas e Soraya, mas Milena, que não tinha filhos, mas mantinha a porta sempre aberta para todos os pais dos quatro blocos do edifício, quinze andares cada, quatro por andar. Só aceitava dinheiro, mas sempre tinha uísque, vinho, cervejas, camisinhas e uma cama enorme, a um lance de escadas da academia de ginástica do prédio. Tereza descobriu onde eu investia minhas comissões de vendas e tivemos que mudar do prédio.

A vida é assim.

Mudei foi para o prédio da esquina. Pedro, pintor da cobertura com piscina. frequentava a academia quando, filhos na escola, as mães ajustavam seus corpos. Tereza estava cada dia mais gostosa, mais durinha e dourada pelo sol. Um dia, ao voltar do trabalho, ajudei-o a colocar alguns quadros no seu carro, nus femininos, em várias posições. Reconheci algumas moradoras, inclusive minha Tereza. Gostosa, durinha, dourada. Relevei, estava ganhando também.

A vida é assim.

Talvez tenha mudado para uma casa. Meus filhos brincam com as crianças dos prédios do outro lado da rua. Conheço de vista muitos moradores e na padaria escuto histórias sórdidas sobre eles. Um dia, na Paulista, encontro a Soraya almoçando com a Milena e o Pedro, negócios. Convidaram-me para a conversa. Agora cuido das contas, pagamentos, cobranças, não pergunto nada. Nado com Pedro, vizinhas, Milena e Soraya e coloco o nariz onde não devo, entende?

A vida é assim.

Não mudei. Tereza trocou-me por um rico pintor, deixando as crianças comigo. Casei-me com a babá e resolvi o problema. Trabalho numa empresa de comércio exterior. Outro dia, a polícia federal apareceu no escritório. Consolei Soraya...

J.FRID

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Kendra

Kendra acalenta a ideia de ter um filho. Todo aquele sexo não deveria servir só para o prazer, ela pensou. Seria sua resolução de ano novo. Um novo ano, uma nova década, uma nova vida, um bebê. Lembra-se que, muito nova, teve a oportunidade de ter um filho, que estaria hoje maior do que ela. Optou por não ter, uma decisão que achou acertada na época. Hoje ela tem dúvidas, mas está resignada. Com um filho, sua vida seria totalmente diferente, talvez nunca chegasse a Marte, seu grande sonho. Ela é realista e tem consciência que a vida é uma sequência de opções abandonadas, que não adianta ficar pensando no que poderia ter acontecido se outra fosse a decisão. "Não se deve chorar pelo leite derramado ou pela xícara quebrada", dizia sua avó. Seus trinta longos anos lhe mostraram que a vida não é um jogo de xadrez, com regras claras e precisas, mas um jogo onde o tabuleiro tem casas incertas, as regras mutáveis e o adversário nem sempre é conhecido. Não dá para refazer a jogada. Mexeu a peça, tem que assumir as consequências, fazer o melhor possível com o que se tem a mão. A vida é dura, mas bela, ela sabe. A Lua venceu o filho. Mas em novos tempos, outra decisão deve ser tomada. Qual, ela se pergunta. Depende só dela, reconhece.

 

Kendra está pronta para ir correr. É uma boa atleta. A Space Corps incentiva a prática de esportes, o trabalho duro e o sexo por prazer, meios eficazes de controle social, indispensável na manutenção de humanos confinados em colônias. Ela pratica as três atividades com igual interesse, dedicação e prazer, tornando-se uma marciana exemplar. Kendra veste a malha térmica laranja, resistente ao frio intenso e aos raios cósmicos, com ajustes para movimentos atléticos. Óculos espaciais, insuflador nasal, protetor bocal e garrafa de oxigênio. Olha-se no espelho, está muito séria, parece ser uma mergulhadora. Veste sobre a malha um conjunto preto de short e top, presente de Natal enviado da Terra pela sua prima Anna, que dá um toque sensual ao conjunto. Afinal, hoje é dia de festa. Pretende ir até Marte-69 pela trilha que acompanha o Vale do Sol, sobe pelo cânion o Monte das Esferas e segue pelo planalto margeando o Lago Loch Ness. Ela gosta desse caminho porque nele encontrará muitas plantas transgênicas que foram adaptadas com sucesso ao clima e solo marcianos por sua equipe de pesquisas. Todos no espaço são vegetarianos, pois a Space Corps considerou sem sentido prático ou econômico criar animais no espaço para abate. Carne só de tecidos musculares criados em laboratório.

 

Kendra pode ter filhos, é uma jovem mulher saudável. Não haveria problema, só querer e providenciar a criança pela forma mais prazerosa proporcionada pela natureza. Companheiro fixo ela já tem, poderia ser um projeto a dois, criar um bebê. Entretanto, Kendra não pode ter filhos, por contrato. Não adianta querer, agora tem que cumpri-lo, pois sabe que não há como sobreviver no planeta sem um contrato válido. Ela descortina algumas possibilidades de conciliar desejo e obrigação. Será outra difícil decisão sobre ser mãe que deve tomar. Se opções que tem significarem realmente ser uma mãe.

 

Correr é essencial para ela quando tem que tomar alguma decisão séria, a atividade física ajuda-a concentrar-se nos pontos mais importantes do problema, analisar as variáveis, achar os caminhos possíveis, optar, decidir. Ela pega a garrafa de isotônico, liga o localizador e deixa sua colônia. As botas vão levantando poeira vermelha e trazendo-lhe recordações. Kendra tinha visto filmes e fotos da mãe em campanhas pró-aborto no fim do século vinte. "O corpo é meu, eu decido" estava escrito no cartaz que sua mãe segurava numa passeata. Ela lembra que a mãe tentava incutir-lhe a ideia de que a mulher tinha todos os direitos sobre seu corpo e poderia decidir livremente se queria ou não ter filhos. Alertava a filha que, obviamente, isso ocorria apenas nas sociedades democráticas, pois nos estados religiosos, a mulher não era  nada, seu corpo pertencia ao homem, à religião, e em ditaduras,  de esquerda ou de  direita,  os corpos femininos eram subjugados aos interesses dos ditadores. "Por isso é importante batalhar pelos direitos das mulheres, minha filha, pela democracia, contra todas as ditaduras. A liberdade das mulheres, a minha e a sua, está na liberdade da sociedade", doutrinava sua mãe, palavras que Kendra absorvia, sem entender muito bem o alcance delas em função da sua idade. Kendra hoje sabe que a luta das mulheres continua na Terra, mas que no espaço os corpos das mulheres não são delas. Por contrato. Ela sente na pele que a  Lua e Marte não são sociedades livres, apenas locais de trabalho.

 

O Vale do Sol termina e Kendra entra no cânion para começar a subir o Monte das Esferas, Arfa um pouco, a inclinação é forte, são quase mil metros a galgar. O trabalho árduo a faz recordar a dificuldade de seus pais em decidir irem para a Lua. Sua mãe teria que assinar um contrato abrindo mão do direito de engravidar. Seu corpo ficaria sob a supervisão da Space Corps Inc., que lhe implantaria dispositivo anticoncepcional fixo. O pai se submeteria a aplicações quinzenais de remédios que o tornaria temporariamente infértil. A corporação queria ter segurança máxima, o casal teria que fazer exames semanais para comprovar a esterilidade de ambos. Kendra recorda-se que questionara a mãe sobre a coerência da sua decisão de submeter-se aos interesses dos outros, indagando sobre onde estaria a liberdade que tanto pregava. A mãe retrucara que era coerente, pois o corpo era dela, a decisão também, sem nenhuma pressão externa, pois, se quisesse, poderia não ir para a Lua. Ela tinha toda a liberdade para decidir sobre o contrato de trabalho lunar e optara por não levar Kendra e o irmão com eles e por não ter mais filhos.

 

Kendra contorna uma imensa rocha no meio do caminho e recorda-se que não pode ir com seus pais para a Lua porque estava em fase de crescimento, dez anos. Só quando ocorresse a sua menarca receberia autorização para embarcar, já com o dispositivo anticoncepcional instalado. As pesquisas com ratos, cães e macacos tinham constatado deformações nos fetos desenvolvidos em condições lunares. Não iriam arriscar com seres humanos. Monstruosidades não eram boas para os negócios espaciais. Mesmo novinha, poderia ser desejável pelos homens confinados nas colônias lunares. O sexo era incentivado pela empresa como um meio seguro e barato de controle da população expatriada, ocupando as horas ociosas no espaço.

 

Ela completa a trilha íngreme. Na beira do planalto consegue enxergar, ao longe, na paisagem desértica, os módulos hexagonais da sua colônia, conhecida como "Colmeia". Emociona-se, é seu lar há tantos anos, vida muito feliz. Pensa que seria muito bom ter uma criança para cuidar, mostrar as belezas do planeta, ensinar a viver nas colônias, correr com ela pelas planícies avermelhadas, subir as montanhas, ver o por do sol, contar as histórias da colonização sob o céu estrelado. Lar, enquanto tivesse um contrato.

 

A atmosfera limpa permite que Kendra veja a quilômetros de distância. A planície pedregosa, avermelhada e desértica pontilhada por inúmeras colônias mostra o sucesso das pesquisas dos pais.  Agora são milhares de humanos nas centenas de colônias espalhadas por Marte, todos trabalhando para a Space Corps Inc., todos estéreis, por contrato. Retoma a corrida, só faltam cinquenta quilômetros até Marte-69. Espaço e tempo que têm que ser suficientes para ela conseguir decidir entre as opções que lhe parecem disponíveis: ter um filho em Marte, ir para a Terra ter o filho ou ter um filho na Terra. Ela acha que é uma decisão tão difícil quanto a de seus pais ao decidirem viajar para a Lua. A diferença é que eles poderiam optar por não assinar o contrato e permanecerem na Terra, enquanto ela tem que decidir com o contrato em vigor e a dezenas de milhões de quilômetros da Terra.

 

Correndo, Kendra recorda que seus pais explicaram aos filhos que a viagem era uma oportunidade rara e imperdível, que os filhos tinham que entender e aceitar a decisão deles. Seriam os médicos da primeira colônia lunar, quinhentas cobaias humanas confinadas em colônias-laboratório. Liderariam, também, o desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre os efeitos do espaço nos corpos e mentes humanos. Condições gerais de saúde, desempenhos físicos, saúde mental, alimentação, efeitos dos remédios e tratamentos terrestres, ingestão de bebidas alcóolicas e de drogas variadas, todos os aspectos da vida espacial seriam estudados, inclusive a possibilidade da reprodução humana extraterrestre. Cobaias animais e vegetais também seriam empregadas nos estudos, visando a autonomia da vida na Lua e em Marte, a próxima parada da Space Corps Inc. Uma proposta desafiadora e muitíssimo bem remunerada. Os pais falaram que a viagem era o futuro dos filhos, o futuro da humanidade. Kendra se recorda que ela e o irmão não conseguiram contestá-los, tristemente mostraram alegrias pela viagem.

 

Kendra agora corre às margens do Lago Loch Ness, um lago sem água, tão falso quanto o monstro escocês. Passa sob um renque de goiabeiras que lhe provocam recordações da casa da tia Márcia, com quem moraria até a hora de embarcar para a Lua. Vem-lhe a visão das pequenas goiabeiras do fundo do quintal, sob as quais perdeu a virgindade diversas vezes, sempre com o menino bonito da casa ao lado. Kendra sorri ao lembrar que, para surpresa de todos, seu passaporte para a Lua veio da gravidez inesperada e não da menarca tão desejada. Como aprendera, a natureza só pensava no lema "crescei e multiplicai". O esperma do jovem localizara seu primeiro óvulo maduro, evitando seu desperdício. Despreparada, tivera que tomar uma decisão, difícil para uma mulher madura, dificílima para uma menina sozinha.

 

Emocionada, Kendra para em um mirante turístico, onde equipamentos especiais emulam a água serena de um lago, com pequenas vagas provocadas por uma brisa leve, que a malha térmica não deixa sentir, mas percebida no movimento das folhas das árvores circundantes. Simulacros de pássaros voam sobre a água inexistente, completando a aparência terrestre do local, onde muitos vão matar as saudades de casa. Com os olhos fixos na imagem da água do lago, ela recorda a reação da mãe à sua gravidez. Objetiva e clara, como sempre, serena na tela do celular. "Você sabe o que eu penso disso. O corpo é seu, você é quem decide o que vai fazer com ele. Mas não pode vir para cá grávida nem trazer o bebê. Você quer gerar um monstro? Ou condenar seu filho a deformidades? Pode tirar ou ter a criança e criá-la, eu mando dinheiro para vocês. Ou deixar com a Márcia e vir para cá, como é seu sonho. A decisão é só sua. E do menino, se ele se interessar. Mas o corpo é seu."

 

Kendra percebe que está novamente tendo de decidir entre três opções difíceis. Três. Sorri, a criança deveria se chamar Trindade. Ela retorna a corrida, o sol irá se por logo e com isso o frio vai piorar muito. Faltam trinta quilômetros até Marte-69, ela tem dez quilômetros para analisar cada opção. Pensa na primeira, que seria aditar seu contrato para tornar-se cobaia de reprodução humana extraterrestre, última etapa dos estudos iniciados por seus pais. Teria que concordar previamente, por contrato, que, a critério exclusivo da Space Corps, abortaria o feto se ele fosse defeituoso ou descartaria o bebê se ele viesse a apresentar doenças graves. Kendra emociona-se, é uma decisão difícil, um pouquinho atenuada considerando-se que as novas pesquisas mostraram riscos baixos de defeitos fetais com a adoção dos novos protocolos médicos. Ela sente que descartar o bebê é um eufemismo para matar a criança, seu filho. Caso aceitasse, não precisaria sair de Marte. Manteria seus sonhos espaciais e teria seu bebê. Para de correr ao relembrar as palavras da mãe: "Você quer gerar um monstro? Ou condenar seu filho a deformidades?" Daria para ela aceitar isso? Conseguiria abortar ou eliminar seu filho? Depois que nascesse, ele seria seu ou da Space Corps? Meramente uma cobaia?

 

Recompõe-se e segue pelo caminho para Marte-69. Mais dez quilômetros e Kendra analisa sua segunda opção. Negociar o contrato para conseguir o seu encerramento prematuro, com o pagamento, pela companhia, da viagem de retorno à Terra. Significaria trocar seu sonho de morar em Marte pela criação do filho. Ela se interroga: a criança mereceria tal sacrifício? Cobraria do filho a frustração de seus sonhos espaciais? Quereria tanto um filho para abrir mão de seus sonhos mais importantes? Angustiada, acelera seus passos como se no final da trilha houvesse a resposta certa. Relembra Shakespeare: "Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos". O que seria dela sem seus sonhos? Mais uma desiludida e infeliz na Terra? Ser mãe bastaria?

 

Kendra já consegue ver as luzes de Marte-69. Ela começa a analisar sua última opção, que seria continuar no planeta e usar seus óvulos armazenados na Terra para gerar uma criança, num útero artificial como muitas mulheres faziam para não passar pelos desconfortos da gravidez e do parto. Depois do nascimento, mandaria entregar a criança para a tia Márcia criar, como seus pais fizeram. Ou mesmo para a sua mãe, em vias de se aposentar na Lua.  Poderia acompanhar o crescimento da criança por meio de hologramas sensoriais, cada dia mais reais. Poderia sentir o cheirinho do bebê e ele o dela, como mãe e filho. Escutaria sua voz e ele a dela. Estaria presente na vida da criança, mesmo estando a dezenas de milhões de quilômetros de distância. Poderia até segurar o bebê com o braço robótico e quando ele fosse maiorzinho, abraça-lo, acaricia-lo pelos hologramas. Mas isso seria ser mãe?  

 

Ela chega às portas de Marte-69, que está toda enfeitada para o réveillon, com faixas comemorativas nos mais diversos idiomas da Terra. São dois dias terrestres de festas para atender a todos os fusos horários, pois os habitantes de Marte vieram de quase uma centena de países terrestres, fruto da política da Space Corps Inc. para a diversidade de seus trabalhadores espaciais. No calendário da empresa ainda existiam festas de comemoração dos Anos Novos Chineses, Judaicos, Muçulmanos e de qualquer outra religião.

 

Kendra reconhece, satisfeita, que a corrida teve o efeito esperado. Chegara ao âmago do problema. A questão não era decidir entre as três opções, mas definir o significado de ser mãe. O que ela esperava da maternidade? Que sentimentos a criança preencheria? Quanto ela estaria disposta a renunciar pelo filho? E seus sonhos? E sua vida? Conclui que precisaria de muitos quilômetros vermelhos para chegar a uma decisão, mas não se preocupou. Era uma mulher saudável de trinta anos e poderia esperar. Feliz, entra em Marte-69, retira a malha amarela e os acessórios, ajusta o conjuntinho preto e cai na folia do réveillon de dois mil e cinquenta. "Mamãe eu quero, mamãe eu ...."


José FRID

 

 

 

sábado, 28 de agosto de 2021

Pular de alegria...

Ontem, no meu quarto, no andar superior, de repente tive vontade de dar um pulinho – há dois anos não dou um pulinho – você sabe, aquele, do tipo 'pulo de alegria'. Eu estava com medo. Fui até a janela e, por segurança, me agarrei à soleira. Depois, fui até o meio do quarto e pulei. […] Foi uma experiência maravilhosa.

Katherine Mansfield em carta ao marido, de 10 de novembro de 1919, relatando um dos raros momentos em que se sentia tomada por uma súbita e inesperada alegria.


sábado, 8 de agosto de 2020

Ler, Escrever, Ser

Minha neta tem um pouco mais de cinco meses. Quando vou poder comprar um livrinho para ela ler? Os pais me desanimam, dizem que vai demorar um pouco para ela se interessar por leituras, agora só quer saber de mamar, agarrar os pés, virar-se no berço, colocar tudo na boca, dormir e chorar, não necessariamente nessa ordem. Não lembro quando ou como aprendi a ler. Meus pais eram grandes leitores: livros, jornais e revistas em todos os cantos da casa. Devo ter desejado aprender logo a ler para compartilhar aqueles objetos mágicos, mas não tenho lembrança dessa fase. Não fui precoce na leitura, uma criança normal, aprendendo na escola no momento determinado, tarde para os dias de hoje. Tenho inveja de quem se lembra de como aprendeu, da cartilha que usou. Vovô viu a uva. Recordo apenas em ficar depois da aula treinando caligrafia, minhas primeiras letras devem ter sido terríveis. Espero que a minha neta puxe, neste aspecto, a mãe ou a avó, que têm letras bonitas. Mas será que até lá ainda se usará letras manuscritas?

Minhas letras não melhoraram, tem horas que não as entendo, verdadeiro código secreto. A secretária tinha dificuldade em interpretá-las, naquela época pré-computador, usando uma IBM elétrica de esferas. Não me incomodava em fazer correções no texto datilografado, mas uma coisa me tirava do sério: palavras inexistentes! Não entender a letra e trocar “pacto” por “pasto” ainda passa, mas por “palto’? “Palto”? “São” por “não” seria aceitável, mas por “rão”? “Rão”??? Hoje, com computadores, sofro ao digitar minhas anotações.

Outra lembrança dessa fase é sobre o uso do eme ou do ene antes do pê e do bê. O livro mostrava que as letras pê e bê eram gordinhas, pesadas, por causa da barriga grande. O ene era um nadador fraquinho, só tinha dois tracinhos, enquanto o eme era fortão, três traços, só ele conseguia salvar as duas letras obesas do lago. Até hoje não esqueço essa bobagem e, lógico, nunca erro. Será que minha neta vai aprender sobre letras obesas e letras salva-vidas?

Tenho uma recordação agradável, já dominada a arte de juntar letras em palavras. Terceiro ano do primário, uma redação premiada! A professora devia entender de hieróglifos traçados a lápis em papel almaços. Após lê-la na frente da turma, ganhei parcos aplausos e algumas guloseimas. Sofrimento para o tímido, alegria para o gordinho guloso que eu era (sou). Não lembro o tema da redação, talvez o registro de um passeio ou das férias. Guardei com carinho aquela redação por anos, relendo algumas vezes, até o papel pautado, com meu nome no cabeçalho, começar a desfazer-se e o grafite sumir. Pensei em copiar a redação, agora a tinta, mas na ocasião, do alto dos meus doze, treze anos, achei o texto tão bobinho que, envergonhado, joguei a surrada folha no lixo. A literatura brasileira perdeu um manuscrito precioso! E minha neta nunca vai ler sobre o passeio que o avô fez em priscas eras. Na vez dela, o relato será feito com celular, com cores, movimentos e sons. Guardado nas nuvens.

Por falar em prêmio escolar, ganhei outro no início do ginásio, hoje chamado de Fundamental. Não me recordo do motivo da premiação, mas o brinde foi inesquecível: um livro com os Discursos do Presidente Castelo Branco. Tentei lê-lo, Deus é testemunha. Insisti porque, quando pequeno, antes da época daquela redação premiada, estava em dúvida entre ser leiteiro ou presidente. Ler os discursos de um deles poderia indicar o caminho da presidência. Fez efeito contrário, resolvi ser astrônomo, viver no mundo da lua. Será que minha neta já sabe o que quer ser? Presidente também? Leiteiro não há mais...

José FRID

sábado, 21 de março de 2020


FELICIDADE...

Gravar entrevista? Pode sim. Senta aqui do meu lado, assim não atrapalha meu trabalho. Tá gravando? Pode perguntar... Dizem por ai que sou gordo e feliz? Feliz sim, gordo não, pelo amor de deus. Cheinho, forte, pode ser. O que é ser gordo, diz pra mim. Ter sobrepeso? Barriga? Cara redonda? Braços roliços? Não, pra mim gordo é quem se sente gordo, obeso, inchado, quem não pode fazer as coisas que quer. E eu não me sinto assim não. Tenho barriga, sim, mas só barriga, mais nada, uma barriguinha saudável, nem atrapalha, consigo dar laço nos meus sapatos. Sou é grande, largo, mamãe que fez assim. Toda a minha família tem cara redonda, sinto nos dedos. Família lua cheia, sabe? Caminho muito, devagar e sempre, mas vou pra todo lado com minha bengala, o que muita gente não faz. Ando daqui até a Augusta, subo até a Paulista. Feliz? Sim, feliz com meu corpo e com minha vida. Dentro do possível, né. Podia ser mais feliz, claro, ganhar na loteria, estudar mais, ter outro emprego, mas também poderia ser menos, ser infeliz, como muitos que encontro por aí, jogados na rua... Poucos têm uma mulher como a minha, maravilhosa, filhos legais, amigos... Tem um povo que fica ali, do outro lado da rua, gritando e batendo na bíblia, falando de demônio, essas coisas, esse povo só pode ser infeliz, muito infeliz. Também são infelizes o que ficam pedindo para as ciganas do viaduto ler a sorte... Quem quer saber do futuro não está feliz com a vida, quer ver mudanças, quer saber se vem felicidade pela frente, não é mesmo? Ainda bem que as adivinhas sempre dizem coisas boas para os clientes, que vai aparecer o príncipe encantado, um emprego novo, essas baboseiras, senão seria uma chuva de gente caindo do viaduto nos carros lá embaixo... O que é felicidade pra mim? Complicado... Uma vez escutei num dicionário que felicidade seria "um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude são transformados em emoções ou sentimentos que vão desde o contentamento até a alegria intensa ou júbilo, significando bem-estar espiritual ou paz interior", se não me falha a memória. Minha memória é muito boa, presto atenção e gravo tudo. Memória de elefante, dizem. Não gosto dessa frase, pois fico sem saber se é elogio sincero ou deboche. O povo é cruel, um bando de hienas, aproveita qualquer falha nossa para atacar. O elefante é um bicho grande, já pus a mão num deles no zoológico, lembro bem, mais alto que minha mão esticada, largo, não dá para abraçar, maciço, vigoroso, uma pata imensa, tromba grossa, esquisita... Queria tocar a girafa, o hipopótamo, mas não deixaram... Felicidade? Pois bem, a definição começa com um estado durável... Logo não é permanente, constante, eterna. Com isso eu concordo, eu e o Lupicínio, que canta que a felicidade foi-se embora... Acho que a gente é feliz e nem sabe. Quando acaba a felicidade é que a gente percebe que era feliz... O dicionário fala em estado de plenitude e de satisfação, que todo mundo sabe o que é. Come bem e fica satisfeito, trepa e fica satisfeito, bebe bem e fica satisfeito, dorme bem e fica satisfeito... A definição diz que a felicidade transforma sofrimentos e inquietudes em contentamento, em alegria. Ora, então felicidade é uma máquina que transforma sofrimentos em alegrias. Todo mundo quer, mas não tem pra vender! Cada um tem que inventar a sua própria máquina. O cara feliz é alegre. Sou feliz, sou alegre. Quem olha para mim, aqui no trabalho, talvez não veja alegria em mim, pelo contrário, só vê tristeza, dor... Ledo engano, sou um cara taciturno, mas sou muito alegre. Gosto de palavras difíceis, viu. Ledo engano é uma delas, escutei aqui na rua, o computador disse que era um engano que a pessoa faz pensando que está fazendo certo. Quantos a gente não faz, né? Ledo engano. E taciturno é bonito, escutei num livro e no dicionário: "aquele que por natureza fala pouco, que denota melancolia, que inspira sentimentos lúgubres ou macabros, que tem mau humor". Ledo engano, só falo pouco, só isso. Não agora, né, estou falando pra burro. Aqui no trabalho fico quietinho, no meu canto, fico só na minha, taciturno. Faz parte do meu show, como canta o Cazuza. Quem me vê pensa logo em infelicidade, e ver a infelicidade do outro é desagradável, machuca, aí tentam compensar, minha mão tá ali, esticada, pronta... Saem felizes, achando que sou infeliz. Ledo engano. Como canta o Seu Jorge, "felicidade é viver na sua companhia, felicidade é estar contigo todo dia, felicidade é sentir o cheiro dessa flor, felicidade é saber que eu tenho seu amor...", conhece a música, não? E ele ainda diz que "felicidade, é acordar do seu lado, tomar um café reforçado, depois sair pra correr com você..." Porra, assim sou feliz para caralho, tenho minha casinha, minha nega chamada Tereza, como a do Jorge Bem, meus filhos, meus amigos, vivo em paz, que mais eu quero? Talvez correr, mas andar tá bom... A música também diz que "felicidade é num fim de semana, curtir uma praia bacana, um pôr do sol de arrasar..." Gosto muito de praia cheia de gente, músicas, crianças brincando, o marulhar das ondas do mar, os vendedores ambulantes gritando seus produtos, cervejinhas, pastéis, camarões... Agora, pôr do sol não é pra mim, não vejo graça nele, entende, não? O Janeci canta a felicidade também, conhece o cara, não? Sou muito musical, todo ouvidos como diz meu filho mais velho. "Melhor viver, meu bem, pois há um lugar em que o sol brilha pra você, chorar, sorrir também e dançar, dançar na chuva quando a chuva vem...", já dançou na chuva? Muito bom, muito bom, adoro andar na chuva, gostaria de pular nas poças, mas não consigo vê-las... Ele completa que "tem vez que as coisas pesam mais, do que a gente acha que pode aguentar, nessa hora fique firme, pois tudo isso logo vai passar..." Ledo engano, nem tudo passa, passa não, a gente tem que viver assim mesmo, transformar o sofrimento em alegria, não é mesmo? Eu faço isso, é meu lema, não deixo o sofrimento ficar grande, corto logo, as dores também, alegria, alegria. "Você vai rir, sem perceber, felicidade é só questão de ser, quando chover, deixar molhar, pra receber o sol quando voltar...", minha voz é boa, acho que vou ser cantor, não pareço o Steve Wonder? O sol sempre volta. Isso é uma verdade. E felicidade é questão de ser feliz e sou, mesmo sendo gordo, cego, pobre... Porra, alguém cuspiu na minha mão!

José FRID

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Pragmático?

(Continuação de "Pragmatismo" - ver em 05/02/2020)
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- Por que só os jovens podem dispor de corpos jovens? Por quê?
- Boa pergunta! Precisamos de outra cerveja. Garçom! Uma Original agora!

Um bar próximo de uma faculdade, sexta à noite, dois professores doutores conversando. Têm quase cinquenta anos, casados, três filhos um, dois o outro.

- Antigamente não era assim. Veja em Machado de Assis, moças de quinze anos com homens com quase quarenta anos. Charles Dickens, com cinquenta e oito, trocou mulher e dez filhos por atriz de dezoito anos. Ela uma graça, ele velho, careca e barrigudo. Nâo deixou de ser um ilustre e querido escritor.
- Mas... Por que mesmo estamos falando desse assunto?
- Estou numa enrascada, envolvido com um corpo jovem, 18 aninhos....
- Você? Alguma aluna? Copiando o reitor?
- Não, não é da escola. Ela trabalha numa loja perto do campus.
- Meu amigo papa-anjos! Quem diria! Caçando fedelhas pelo bairro.
- Caçando nada. Nem sei como aconteceu, tudo foi tão rápido. Um sorriso, umas conversas, quando vi já estava pagando o apartamento dela...
- Então é sério! Largou a Cecília para ficar com a ninfeta??
- Não, você não entendeu nada. Só tô pagando.
- E comendo, não? Conte-me tudo, principalmente os detalhes sórdidos!
- A coisa é simples: um homem, uma mulher, desejos e só.
- Mas como uma ninfetinha foi dar bola para um velho careca e barrigudo?
- Velho não, quarenta e cinco anos só. Tô bem conservado. Pergunte para ela.
- É puta?
- Não! Moça de família, trabalhadora.
- Mas aceita seu dinheiro...
- Não é isso. Ela dividia o apartamento com duas colegas, que deram para trás. Não consegue bancar sozinha, fiquei com pena e estou ajudando a menina.
- Safado! Se aproveitando de uma menina inocente.
- inocente é exagero, muito esperta. Não sei quem se aproveita de quem.
- Tá valendo a pena?
- Tá. Tô revigorado. Tava mesmo precisando de uma coisa assim.
- Bonita? Gostosa? Boa de cama?
- Talvez. O conjunto é que importa. Tinha esquecido como é uma pele jovem, macia, firme, lustrosa. E uma bundinha dura, empinadinha, peitinhos durinhos, olhando pra mim, que cabem na mão. Ela é uma máquina do tempo, me leva direto aos meus vinte anos, ao tempo da faculdade, às estudantes, às festas....
- Melhor que Cecília?
- Não sei, não dá para comparar. Cecília é uma mulher completa, não é só o corpo. É o meu presente, o futuro. A menina é o passado. Quero as duas.
- Mas com toda a sua empolgação,  a menina pode ser o seu futuro...
- Tenho vinte e sete meses para decidir.
- Por que vinte e sete?
- O contrato de aluguel, trinta meses. Já se passaram três meses.
- É foda, amigo. Uma enrascada deliciosa, mas complicada. Como aconteceu?
- Cecília pediu uma forma de pudim. Na loja tinha dezenas de tipos. A menina mostrava uma, eu tirava foto e mandava para a Cecília...
- Então ela sabia que você era casado! Safadinha!!
- Ela tinha que abaixar e pegar cada forma, depois devolver, pegar outra. A camisetinha subiu e mostrou seu umbigo com um piercing com três estrelinhas, uma no buraquinho e duas penduradas em correntes. Uma graça. Perguntei se tinha doído, ela respondeu que não, mas os dos seios foram dolorosos. Colou a camiseta no corpo, apareceram uma barrinha com duas bolinhas em cada bico. Rapaz, aqueles seios duros, apontados para mim, quase perdi a cabeça. Fui salvo pelo zap da Cecília mostrando qual forma comprar. Tudo podia ter parado aí se Cecília não me mandasse voltar lá para trocar a forma por outra e mais  outra, comprar uma escumadeira, etc., nisso vi uma tatuagem no cóccix, ela disse que tinha outras, conversa vai, conversa vem, o estrago estava feito.
- Então a Cecília é que é culpada do seu namorico?
- Culpa concorrente! Se eu não tivesse que voltar várias vezes à loja...
- Safado! Mas é isso, meu amigo, cai dentro, mas não esqueça a camisinha!

JOSÉ FRID

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Pragmatismo



Ele é casado!

E daí? Só quero ele que ele pague uma quitinete pra mim.

Você não quer casar?

Um dia, quem sabe, mas não com ele.

Não? Ele pode largar a mulher...

Não é isso. É que ele é velho. Deve ter mais de quarenta, quase cinquenta.

E você vai transar com ele! Que nojo!

Nojo nada. Ele é bem cheirozinho, durinho, bonzinho. Não transo com outros? 

Mas é diferente, com o namorado é por amor!

Amor? Cê tá enganada....

O que você faz com o Juliano?

Sexo. 

Sei, sexo, é claro, não é isso que estou dizendo. Você está com ele por amor!

Não é isso. A gente precisa de alguém para dar uns amassos, simples assim.

Juliano é um gato!!

Por isso estou com ele. Lindinho, gostozinho, mas não tem futuro...

O seu velho tem?

Tem. Ou melhor, já tá tendo. É professor doutor...

Médico de quê? 

Você é burra mesmo. Professor doutor é título de quem estudou pra burro. 

E o seu futuro? Cê não pensa na vida? Esse cara vai ser um atraso...

Tô pensando! Prometeu bolsa pra mim, ele é diretor da faculdade da esquina.

Que chique! Uma menina estudiosa! E filhos?

Filhos? Não agora. Tenho dezoito anos, mulher! Sou uma menina...

E querendo se vender pro velho! Tenha juízo! Vergonha na cara!

A gente se vende nessa bosta de loja todo dia, por um salário de merda.

Não vem não, mais respeito, eu trabalho aqui, mas vendo só as mercadorias...

Aí que você se engana. Nossos corpos e mentes ficam na mão do gerente, que manda babar os clientes, sorrir, ser simpática, passar batom, ficamos oito horas em pé, sem pensar, a alma roubada, o coração esmagado...

Dramática você...

Estou cansada de gastar três horas para chegar ao trabalho, mais três pra voltar. Quero morar aqui perto, acordar tarde, ter mais tempo pra mim, passear.

O velho é a saída?

Sim, o velho é meu futuro. Por enquanto, depois arranjo outro. Por amor.

Amiga, posso dizer uma coisa? Ser sincera?

Pode. 

Você não é exatamente uma mulher bonitona, gostosona, do jeito que os homens ficam loucos. Você acha que o velho vai pagar pra ficar com você? 

Sim, acho. Porque sou um corpo jovem. E isso basta para o velho. Jovem! 

E que tem isso?

Ele é velho, a mulher é velha, eu sou a namoradinha de quando ele tinha cabelos e não tinha barriga nem grana. Agora tem e quer comprar o que pode. Ele vê meu umbigo de fora e fica desequilibrado, vê meus peitos durinhos e baba. Ele quer ter tudo isso para se sentir jovem outra vez. Ele me viu com Juliano e agora quer me ganhar dele, mostrar que é jovem também, poderoso. 

Ele vai te dar dinheiro?

Não, não é bem assim a coisa. Tenho tudo armado. Vou alugar uma quitinete na rua de baixo, baratinha, com você e a Mariângela e ele vai ser o fiador...

Eu não vou morar com você! Me ponha fora disso!

É só pra dizer que vamos dividir o apê. Já tenho tudo acertado com o corretor. Eu não pago e ele vai à faculdade cobrar do velho. Digo pra ele que vocês desistiram, que o apê é nosso ninho de amor e pronto: o pato está no forno.

Você é o cão!!

Nada! Tenho que aproveitar meus dezoito anos. Ser realista, pragmática...

Prague o quê?

Pragmática, uma palavrinha nova que aprendi com ele. 

Nada como namorar um professor doutor....




José FRID

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O CÃO E EU NUM CASO DE AMOR E SEXO...

Estou fumando recostado em um carro. Tive trabalho para achar um veículo limpo que merecesse minhas nádegas  e costas. A calçada é larga, uns dois metros e meio até a grade do prédio,  há espaço para os pedestres e minhas baforadas. Acabei de chegar na cidade, preciso fazer amizades com vizinhas.

É a hora canina, quando os cachorros dos prédios levam seus donos para passear. Os bichos não cansam da rotina: cheirar xixi dos outros cães,  fazer xixi para os próximos cheirarem, latir para animais e humanos, defecar para o dono limpar, arranhar o chão, coçar pulgas reais ou imaginárias, avançar em desafetos caninos e humanos, interagir com outros cachorros, enquanto seus donos se arrastam pacientemente atrás deles ou interagem com humanos. Alguns desses escravos caninos são belos exemplares femininos, com quem gostaria de interagir, mas odeio cães, animais subservientes que se vendem por qualquer resto de comida ou bolinha jogada ao longe, que gostam de cheirar, babar e lamber os humanos. Para flertar com elas, teria que fazer festinha nos bichos. Argh!!!

Ela vem se aproximando toda cheirosa, cabelos ainda úmidos, roupas caseiras confortáveis, que moldam um belo corpo. Tem toda a minha atenção, mas a dela está inteiramente voltada para o Toby,  um vira lata resultado da mistura de umas dez raças, pelo menos, com resultado pavoroso, diga-se. Bicho feio, que a dona beija, abraça, afaga, chama de meu amor, filhinho, querido, tudo que eu queria para mim. Minha  chance seria dizer "que cachorrinho bonito" e tentar afagá-lo, mas a peste não ajuda, olha-me de lado, rosna. Ele sabe que não gosto dele,  ele também não gosta de mim. Ela sabe que eu gosto dela?

Ela aproxima-se. Trago forte e, ao expelir a fumaça na sua direção, capricho na formação de anéis concêntricos,  que evoluem pela calçada como se fossem argolas de prata para prendê-la pelos pulsos e, quem sabe, pelo coração.

Ela tosse  ao passar pelas argolas e me dá um olhar de reprimenda. Linda,  me bate que eu gosto! A fera percebe a sua contrariedade e rosna para mim, tentando abocanhar-me. Ela segura-o com decisão,  pede desculpas com a voz mais doce do planeta e prossegue com a caminhada. É ela! Contato visual feito, mas o que fazer quando ela voltar? Não posso perder a oportunidade.

Os dois se perdem na curva, matuto estratégias, não posso mais apelar para os sinais de fumaça. O melhor seria deixar o feioso cão me morder e com isso entabular conversa, perguntar pelas vacinas,  trocar telefones. Solução doída, dentes grandes, mandíbulas fortes, quem sabe ter que tomar vacina contra a raiva, perder sangue, um pedaço da perna. Será que ela vale esse sacrifício?

Penso que penso, a única solução é mesmo eu me sacrificar na pira do amor, no caso a bocarra do Toby. Eles assomam na curva, fico nervoso, mas a decisão está tomada. Abaixo as mangas da camisa, puxo as meias para cima, acerto as pernas do jeans sobre os tênis, tudo para minimizar o prejuízo. O plano é dirigir-me direto a ela para conversar, provocando o ataque do cão. 

Ela aproxima-se, já antecipo as dores das mordidas,  penso na injeção na barriga contra a raiva, quase desisto, mas ela é linda, merece o sacrifício. Ela mais perto, desencosto do carro e dou a última arrumação nas roupas. Os dois mais próximos, jogo o cigarro no chão e vou em direção a eles. Toby percebe a minha intenção e arma o bote, tenciono-me todo à espera das mordidas....

O bicho geme alto, gane, contorcendo-se de dor. Um artista. Dei um bicão no bicho, pegou bem na sua lateral. No último momento,  percebi que não precisava sofrer, o cão poderia sofrer por mim, o resultado seria o mesmo. Bom ser um racional versus um irracional. 

- Seu animal!!!
- Ele tentou me morder!!!
- Mentiroso!! Ele só queria cheirar você, seu porco assassino!!!
- Ele vai ficar bem. Vamos levar no veterinário.
- Tadinho do meu Toby. Assassino!!!

O cão do demônio sobreviveu. Nós três estamos morando juntos há quatro meses, love story. Toby tem medo e raiva de mim. Ele come minhas havaianas, mas isso é um preço baixo por expulsá-lo da cama de Letícia. 

José FRID

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Nunca saberemos....

O trem do metrô abre as portas e uma miríade de passageiros desce na estação, sob a angústia das duas filas laterais dos que pretendem embarcar. O fluxo de saída parece o Rio Amazonas desaguando no oceano, não acaba nunca de correr água,  para desespero dos que estão na plataforma.

O último a sair, justo aquele que libertará a passagem, é um rapaz alto, magro, barbudo, uns vinte anos, que caminha lentamente porque tem a cabeça virada para a direita, observando fixa e embevecidamente alguma pessoa fora do alcance dos milhares de olhos ferozes que querem entrar no vagão. 

O Rio Amazonas inverte o fluxo e agora é o trem que é invadido pelo mar, para desespero dos que estão dentro do vagão,  que são inapelavelmente comprimidos até se comprovar que dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo.

Ajeitada a boiada, o trem parte e os novatos procuram identificar quem merecia tanta atenção do magrelo barbado. Seria uma atriz da Globo? Uma modelo famosa? Um craque do Palmeiras? Um repórter da Record? O governador? Nenhum deles é localizado no vagão. Quem, então? Quem?

A malta, decepcionada, procura no meio dos comuns. Seria a loira bonita,  que podia ser a mãe dele, seios empinados sob delicada blusa de crochê tricolor? A moça com rabo de cavalo trançado, que balança a cabeça conforme a música que só ela escuta? A mulher grávida com barriga e seios enormes,  que está a ponto de maternidade, sentada no banco reservado? Ou a senhora miudinha à sua frente? A executiva de paletó vermelho sobre blusa branca de seda que deixa entrever sutiã todo bordado? Ou a menina de vestido listrado curtinho, curtinho? A mulher de blusa verde que deixa o umbigo à mostra, "mais por fora que umbigo de vedete", como diria o bisavô do rapaz? Indecisa, a turba percebe que são tempos modernos, o magrelo pode estar interessado em outro, como o barbicha  oriental, com óculos enormes no qual caberiam quatro olhos.  Ou o outro barbudo, vistosos fones de ouvido, que funga a cada quinze segundos, repuxando a cabeça, coçando  nariz e mordendo o polegar a cada intervalo. Quem sabe o rapaz de ralo bigode e cavanhaque insipiente. Seria a moça ultrasupermaquiada que fala ao celular ou o bombadão com tatuagens tomando o pescoço e meia cabeça? A mão com longas unhas verde-piscina que envolve o balaústre superior? Ou a meia rosa shocking que emerge de um tênis prateado?

Nunca saberemos....

José FRID

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Pássaros....

Metrô, Linha Verde, lotado. Duas mulheres lado a lado. A primeira, mais nova,  segura-se no corrimão superior com a mão direita. A manga do casaco escorrega e deixa visível uma revoada de pássaros azuis, gaivotas ou pombos no mal traço do tatuador, começando no cotovelo e fazendo suave inflexão para  a esquerda, como fossem sair do braço na altura do punho, abaixo do polegar. Para onde iriam, o que os atraíam para fora do corpo feminino? O trem dá um tranco "arruma-passageiros", para ninguém esquecer dos ônibus lotados nas avenidas acima do metrô. A domadora de pássaros levanta o braço esquerdo procurando novo apoio, revelando uma miríade de finas pulseiras prateadas e um grande relógio com grossa pulseira metálica. Seriam esses brilhos que atrairiam as gaivotas ou os pombos? 

A outra mulher, à esquerda da primeira, cabelos loiros quase brancos, batom vermelhão no meio de uma pele muito rebocada, segura-se no balaustre vertical, também com a mão direita,  duas destras. Com o solavanco do trem, ela sente necessidade de um apoio adicional, levantando o braço esquerdo em direção ao corrimão superior.  A manga do casaco vermelho desliza desnudando um ramo de grandes rosas. Vejo o braço direito da primeira mulher fremir rápido, a mão deslizar para a esquerda no corrimão: são beija-flores!

José FRID

segunda-feira, 11 de março de 2019

O guardião



Ele sentiu o cheiro do desconhecido, o cheiro do inimigo atrás da porta, o cheiro da morte. Retesou-se todo, uma descarga elétrica cruzou todo o seu corpo, solicitando nervos, músculos, artérias. O que fazer? Evitar o embate com o desconhecido seria uma boa medida. Se fosse alto, grande, forte, bastava mostrar-se para dissuadir o outro. Infelizmente, sua família era de pequenos e, dentre eles, ele era o menor, quase anão. Melhor seria blefar.  Alertou ao outro, em alto e bom som, que ele estava ali, preparado, pronto para se defender, a todos e a casa. O desconhecido não tomou conhecimento do seu alerta e mexeu na porta com o intuito de abri-la. E agora? Só restava-lhe buscar dentro de si forças, surpreender o invasor. Sua família era de baixinhos mas valentões, não levavam desaforos para casa, muitos grandalhões já tinham se arrependido amargamente por enfrentarem alguém da família.

O desconhecido prossegue com a invasão, mas temeroso com quem irá enfrentar. A porta vai sendo aberta lentamente. Os dois adversários enfim se confrontam. Em segundos eles têm que decidir o que farão: avaliam-se, medem suas forças, confrontam músculos, alturas, portes, identificam intenções, traçam estratégias, planejam o ataque, a defesa ou a fuga. Segundos? Milissegundos. Decisões rápidas, instantâneas, o cérebro inundado por adrenalina é o computador mais veloz.
O invasor recua um passo, mas é tarde, pois é atacado. O guardião gostaria de pular na garganta do desconhecido, encerrar com um golpe só a peleja, mas a diferença de alturas o impede. Assim, foca na parte mais vulnerável do adversário e avança com todo o seu peso de quilo e meio no  corpo do inimigo, cravando com força seus dentinhos de poodle microtoy na pele áspera do calcanhar do outro. "Maldito cão dos infernos!", grita o pai das crianças.

José FRID

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Um casal carioca

31 de dezembro, 10 horas da manhã. O calçadão de Copacabana está lotado de turistas e cariocas, últimas caminhadas para queimar as calorias que serão múltiplas vezes repostas na virada do ano. Um jovem casal destaca-se na multidão: mãos dadas, ela um palmo mais alta, ele a conduzindo como troféu.

Franzino, cabelos raspados incipiente bigode, grossa corrente prateada, regata branca com caveira negra, bermuda verde safari, discreto volume na cintura, havaianas nos pés. Olhar firme, decidido, perscrutando os arredores, atento aos que passam. Não está relaxado, encara nos olhos, intimida.

Vistosa, voluptuosa, volumosos cabelos encaracolados, colar de pedras coloridas debruçado sobre fartos seios, blusa curta branca, piercing no umbigo, mini saia amarela, coxas grossas, sandálias prateadas. Curiosa, repara nas roupas, bolsas, sandálias de quem passa. Desfila, sorri, sabe-se desejada.

14 anos, já graduado no tráfico. Coragem, iniciativa. Aos nove, "avião" levando encomendas. Depois, olheiro fogueteiro. Num ataque de outra facção, empurrou um invasor do alto da laje. Ganhou o fuzil dele e virou soldado aos doze anos. Numa batida, acertou um policial a duzentos metros. Sorte. Sorte.

17 anos, duas vezes viúva. Belíssima, sua desdita. Aos onze, já cobiçada pelos soldados. Aos doze, cedida pelo pai a um dos líderes do movimento. Aos treze, mãe, logo viúva. Quatorze, casada, quinze, viúva. Dizem que dá azar aos seus homens. Ela não liga, vive um dia de cada vez. Acha que tem sorte. E dá sorte.

Quer ser policial, militar. Gosta de ordem, comando. Amanhã não perderá a posse do Bolsonaro, seu presidente. Não teme balas, facas, só ser fichado. Quer ser paraquedista do exército, precisa ter ficha limpa. Quem sabe caveira do BOPE. Contradição? Não para ele. Tráfico é só meio de vida. E morte.

Está satisfeita. Podia ser muito pior. Todos a tratam bem, tem vida boa, mansa. O filho cresce seguro. Terceiro marido, gosta do ardor da juventude, o tesão diuturno. O resto ela ensina, os truques de cama. Eles sabem da vida curta, querem deixar um legado, nem que seja apenas na lembrança de uma mulher.

Tá limpo por enquanto. Seu codinome é "Juiz", mas na verdade é o carrasco, só executa a sentença, não julga ninguém. Prefere enforcamento, limpo e silencioso. Ou o micro-ondas, que não deixa vestígios. Pena dos condenados? Não. Só um trabalho. Não se come galinha, porco, boi? Alguém tem que matar.

Sabe o que ele faz, mas não o teme. O chefe fez-lhe um pedido: tome conta dela e do filho. Ele é carinhoso, carente, seu marido menino. Quer que ele não morra cedo, como os outros dois. Mas se acontecer, sabe que sua beleza assegurará outras camas, será sempre um troféu para guerreiros imberbes.

Param num quiosque da praia. Ele puxa a cadeira para ela. A moça pede uma caipirinha de saquê e morango, o marido uma cerveja e fritas. O garçom reconhece a minoridade do casal e ameaça pedir documentos, mas o olhar firme do juiz o dissuadia. É réveillon, é festa, quem quer saber da lei? Amanhã temos um novo presidente, uma nova ordem….

José FRID

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Sobre contos.....

Cada dia é, em si mesmo, segundo Sêneca, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira?

Machado de Assis sobre os contos

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Sob a proteção de Nossa Senhora de Aparecida

Ele acordou bem cedo, apesar de ser feriado, dia de Nossa Senhora de Aparecida. Chegara  ao final da noite com a família, mulher e três filhos, depois de enfrentar longo engarrafamento. Devoto da Padroeira, não haveria lugar melhor para comemorar a data que aquele sítio às margens do Paraíba do Sul.

Andou no escuro, tateou para achar o camisolão preto com apliques dourados. Vestiu-o e caminhou descalço pela casa, evitando barulhos, não podia ter companhia. Na sala, prostrou-se aos pés de majestosa imagem recoberta por manto preto e dourado, iluminada pela vela bruxuleante de sete dias. Fez suas preces, agradecimentos e pedidos. Levantou-se, fez uma reverência e pediu licença à santa. Com cuidado, retirou a estátua do nicho azul e dourado. Sentiu o peso do bronze e apoiou a imagem no ombro. Caminhou com dificuldade, lembrando-se de alguns romeiros da noite anterior, indo pela rodovia com pesadas cruzes. Cada um com a sua, conforme o pecado ou o pedido, pensou.

Descansou a estátua na mesa da varanda, que rangeu sob os quarenta quilos de bronze. Inspirou o ar frio, observando os primeiros raios de sol furando a noite, ultrapassando as montanhas e indo morrer nas águas sagradas. Aguardou o sol clarear minimamente a trilha à base de pedra na beira do rio.

Virou-se para a imagem, agora quase da sua altura. Olhos nos olhos, agradeceu-lhe pelo ano transcorrido, as alegrias, a ajuda lhe concedida, a proteção, coisas de mãe. Levantou a pesada estátua, escorou-a nos ombros e seguiu em peregrinação até o altar de pedra. Durante a caminhada, um pequeno barco a remo atraiu sua atenção, distraindo-lhe de suas preces.

Colocou a estátua sobre a pedra. Retirou, com todo o respeito, a coroa dourada e o manto da santa. Chegara a hora de banhá-la no rio, cerimônia mística para atrair as graças da Padroeira, como os padres faziam escondido com a imagem original no dia doze de outubro, segredo conhecido por poucos.

Antes que pudesse prosseguir com a cerimônia, o barco tocou na margem e um homem desceu. O remador fora atraído pelos reflexos do camisolão e da coroa. Puxou a embarcação para a terra, colocando-a próximo do barco azul do sítio. Caminhou em direção à estátua desejando bom dia. O devoto, contrariado com a interrupção, não respondeu. O curioso olhou a imagem.

- Ė Nossa Senhora e Aparecida?
- Sim.
- Desculpe minha franqueza, acho uma bobagem adorar estátuas. Certo estava aquele pastor que chutou uma imagem da Nossa Senhora na televisão.
- Aqui ele quebraria o pé, bronze puro.
- Acho religião uma invenção para enganar o povo e deixá-lo satisfeito na pobreza, enquanto poucos desfrutam da riqueza, como você. Invenção do homem que tem medo de morrer. Procura a vida eterna inventando deuses e paraísos. Acha que há vida depois da morte. Pra mim, morreu, morreu, acabou.
- Não acho.
- Noto. O que você vai fazer com a estátua?
- Uma cerimônia religiosa particular.
- Posso assistir? Não acredito nessas bobagens, mas gosto de ver rituais.
- Eu falei que é particular. Gostaria que você saísse do meu sítio.
- Tá bom, não precisa ser grosso, assisto da água. Vou filmar tudo.

O homem foi em direção ao seu barco. O devoto de Nossa Senhora desesperou-se. Como fazer a cerimônia com ele filmando? Ela só tinha efeito se sigilosa! E realizada hoje, dia da Padroeira. Do contrário, um ano inteiro sem proteção! Sem proteção!!!. Correu em direção aos barcos, pegou um remo do barco azul e acertou o visitante na cabeça, que caiu na sua embarcação. Ele bateu mais algumas vezes no outro, até passar o surto. Então viu o sangue, muito sangue, seu corpo tremeu todo, perdeu o equilíbrio e caiu. Ficou prostrado olhando a santa de longe. Fez umas preces e pediu conselhos para a Padroeira. Será que já tinha acabado a proteção conseguida com a cerimônia do ano passado? Não acreditando nisso, insistiu nas preces e no pedido de orientação, mãe me ajude!!! O sol conseguiu ultrapassar as montanhas e mostrar sua força, dourando as águas do Paraíba do Sul. Sua mente se iluminou: o milagre da santa, encontrada por pescadores naquele rio, que trouxera o homem e que também o levaria. Levantou-se, foi ao altar de pedra e pegou o manto. Voltou ao barco do invasor. Com cuidado, constatou que ele, mais que imóvel, morrera. "Morreu, morreu, acabou", recordou. Ajeitou-o no meio do barco, cobriu-o com o manto sagrado, tirou seu remo sujo de sangue e empurrou o barco para dentro do rio. Ficou alguns minutos vendo o barco ser levado lentamente pela correnteza. Calculou que em algumas horas ele passaria por Aparecida, com sorte poderia ser recolhido como a santa. Milagre!

Lavou o remo, banhou a santa, lavou-se nas águas do rio, purificados! Logo estaria mais um ano seguro, sob a proteção da Padroeira, da santa mãezinha dos brasileiros, da poderosa Nossa Senhora de Aparecida. Colocou a santa no altar de pedra e ia continuar com a cerimônia religiosa secreta quando...

- Pai, por que você bateu no moço?

José FRID