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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Pai

Tschabalala Self - 2019

Acrílico, gouache, flashe e tecido sobre tela

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Uísque....

MINHA MÃE ESTÁ TODA CHEIA DE DORES E achaques - mando que tome um pouco de uísque para melhorar - um minuto depois, vejo o meu velho escapulindo de casa para dar um pulo na drogaria - comprar aspirinas, aqueles mesmos comprimidos de antigamente - fico danado, mando mamãe tomar outro gole - finge se reanimar: "Ah, uísque? E aí, o que é que eu faço?" - "Toma com aspirina e vá se deitar" - A cena se passa num lugar qualquer do leste e é triste - [...] 

Jack Kerouac in O Livro dos sonhos, L&PM Pocket, tradução de Milton Persson, pág.82

terça-feira, 12 de maio de 2020

Difícil criar filha em tempos de carnaval...

Minha filha de sete anos e meio:

- Pai, o que é preservativo?
- Onde você viu isso?
- Na placa grande em cima das escadas.

Procuro a placa: "Proteja-se no Carnaval! Retire seus preservativos na estação" 

Como explicar? Penso rápido. 

- É uma coisa que preserva.
- Preserva?
- O mesmo que conserva. Aquilo que colocam na comida para ela não estragar.
- Mamãe diz conservante. Que muito faz mal.
- Isso.

Salvo mais uma vez da curiosidade infinita das crianças. Penso que quem colocou a placa no Metrô não tem mãe nem filhos.

- Pai, por que estão dando preservativos no Metrô? 

Garota esperta, essa minha filha. O pai também deve ser.

- Propaganda de produto novo. 
- Podemos pegar? 
- Deve ser só pra cozinheiros.
- Vamos pegar pra mamãe!!!

Bem que ela iria gostar de evitar outra filha chata como essa. 

- Sua mãe não gosta de conservantes, só de comida orgânica,  lembra?
- É. Mas posso brincar de comidinha com as bonecas e minhas amigas.

E agora? Pensar rápido!

- Vai fazer uma melecada e sua mãe não vai gostar.

Descemos as escadas rolantes, os dois pensando no assunto. Ela analisando as informações e preparando a próxima pergunta, eu imaginando qual será e a resposta conveniente a ser dada. No corredor, vejo de longe o display de arame com milhares de envelopes coloridos. Em cima uma placa com o desenho do envelope de camisinha e os dizeres "Retire e envolva-se com prazer". Preparo-me. 

- Pai, quero envolver....
- Sua mãe não vai deixar,  ela gosta de orgânicos,  lembra?
- Mas dá prazer, deve ter chocolate...

Melhor não responder. 

- Vamos! O trem vai partir!

Puxo a menina pelo braço e corremos para entrar no vagão. As portas fecham e digo para a filha que entramos bem na hora. Os outros passageiros olham para nós,  uns curiosos, outros indignados,  alguns contendo o riso. Olho para a menina: ela brinca com uma tripa com cinco camisinhas.....   

José FRID

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Filhos....

Que pé no saco ter filhos; aliás, por que mesmo as pessoas os têm? Penso que é um tipo de fantasia sadomasoquista da mulher que anseia por explodir em lágrimas, merda, urina, sangue e leite. É exatamente isso, e apenas isso. E, e preferência, o cretino do homem deve prover essa orgia.

Roberto Bicelli in Ego trip, Virgiliae, pág.76

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Nascer do amor....

[...]

E, no entanto, nosso pai poderia ter sido o fotógrafo. Isso deixa espaço para a possibilidade de que, no momento da abertura e fechamento da persiana, ainda exista um resquício de amor entre eles, algo que a parte de mim que é filha deles quer acreditar. Nenhuma criança quer acreditar que nasceu do ódio. Nascer do amor é nascer com a capacidade de amar. É a única herança que importa.

Jennifer Croft in Portrait of Our White Mother Sitting at a Chinese Men's Table, The Paris Review, 28 de agosto de 2019  

And yet our father might have been the photographer. This leaves room for the possibility that, in the moment of the shutter opening and closing, a remnant of love still existed between them, which is something the part of me that is their child wants to believe. No child wants to believe they were born of hate. To be born of love is to be born with the capacity to love. It is the only inheritance that matters.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Antes que elas cresçam


Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer "bonne route, bonne route", como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito "drive-in", ao Tablado para ver "Pluft", não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Viuvez....


Ela era uma mulher de cinquenta e nove anos que se declarava ter quarenta e cinco porque quarenta e cinco eram o que sentia. Ela se casou com um homem consideravelmente mais velho, que havia morrido com setenta e dois anos. Ela se casou com ele pelo seu dinheiro, mas, apesar do conforto e conveniência que isso trouxera, a Sra. Crasthorpe acreditava que, no casamento, ela não havia florescido. Sempre um botão de rosa era como, em particular, pensava em si mesma; e havia, na Sra. Crasthorpe, muita privacidade, sempre houvera. Ela sabia que não diria a ninguém, nem nunca, que Arthur tinha sido enterrado sem uma cerimônia de despedida decente, assim como ela não havia dito a ninguém que era a mãe de um filho ou que havia havido, nos últimos anos de seu casamento, Tommy Kildare e Donald.


"Eu devo saborear a minha viuvez", afirmou, em voz alta e firmemente, em seu carro. "Eu vou fazer algo disso".


 Mrs. Crasthorpe - By William Trevor - February 26, 2018 Issue -  The New Yorker  

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Escolher o pai....

"Na época do  Samurai , tive uma discussão muito ruim com meu pai. Então pensei: não escolhemos nossos pais. Se escolhêssemos, eu teria escolhido algo melhor que isso. E então eu tive uma ideia para um livro, ou, enfim, uma pergunta: o que seria necessário para que fosse possível escolher? Eu acho que livros interessantes exploram novos paradigmas. Primeiro você pensa no paradigma - pode ser: como um enxadrista vê o mundo? Como um estatístico vê o mundo? Então, você procura a forma que faria isso funcionar. Mas esse tipo de livro leva tempo para ser bem executado. Não é apenas uma questão de escrever tantas milhares de palavras por dia. "  

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Mãe....

Nasci há uns trinta anos, numa família de proprietários rurais bem abastada. Meu pai era um jogador compulsivo; minha mãe, uma senhora de caráter... uma senhora bastante virtuosa. Só que nunca conheci uma mulher cuja virtude lhe proporcionasse menos satisfação. Sucumbiu sob o peso de sua própria dignidade e tiranizava a todos, a começar por si mesma. Ao longo de seus cinquenta anos de vida, nunca se permitiu um descanso nem ficou de braços cruzados; estava sempre se movimentando e ocupada como uma formiga - e sem nenhuma utilidade, o que não se pode dizer da formiga. Um verme infatigável a corroía dia e noite. Uma única vez eu a vi totalmente serena: justamente no dia seguinte ao de sua morte, no caixão. Contemplando-a, juro, pareceu-me que seu rosto expressava um assombro sereno; era como se os lábios entreabertos, as faces cavadas e os olhos docilmente fixos soprassem as palavras: "Como é bom repousar!". Sim, é muito bom poder finalmente se livrar da consciência martirizante da vida e dos sentimentos obsessivos e inquietantes da existência! Mas isso não vem ao caso.

Ivan Turguêniev in Diário de um homem supérfluo, Editora 34, pág.10, tradução de Samuel Junqueira.  

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Como os cachorros....

Quando era criança você adorava o silêncio. Depois quis que as palavras te inundassem e te submergissem. Mas você sabia nadar, ninguém precisou te ensinar. Com a gente, você pensa, fizeram que nem fazem com os cachorros: simplesmente nos jogaram na água e aprendemos a nadar ali, na hora.

Alejandro Zambra in Múltipla escolha, Planeta, 2017, pág.31  

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Filhos, cães e gatos

[...]

Outra coisa, aproveitando o espaço, sobre cachorros e gatos: os pais querem que os filhos sejam cachorros, mas os filhos sempre são gatos. Os pais querem domesticar os filhos, mas os filhos, como os gatos, não são domesticáveis.

Alejandro Zambra in Múltipla escolha, Planeta, 2017, pág.105 

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Sob a proteção de Nossa Senhora de Aparecida

Ele acordou bem cedo, apesar de ser feriado, dia de Nossa Senhora de Aparecida. Chegara  ao final da noite com a família, mulher e três filhos, depois de enfrentar longo engarrafamento. Devoto da Padroeira, não haveria lugar melhor para comemorar a data que aquele sítio às margens do Paraíba do Sul.

Andou no escuro, tateou para achar o camisolão preto com apliques dourados. Vestiu-o e caminhou descalço pela casa, evitando barulhos, não podia ter companhia. Na sala, prostrou-se aos pés de majestosa imagem recoberta por manto preto e dourado, iluminada pela vela bruxuleante de sete dias. Fez suas preces, agradecimentos e pedidos. Levantou-se, fez uma reverência e pediu licença à santa. Com cuidado, retirou a estátua do nicho azul e dourado. Sentiu o peso do bronze e apoiou a imagem no ombro. Caminhou com dificuldade, lembrando-se de alguns romeiros da noite anterior, indo pela rodovia com pesadas cruzes. Cada um com a sua, conforme o pecado ou o pedido, pensou.

Descansou a estátua na mesa da varanda, que rangeu sob os quarenta quilos de bronze. Inspirou o ar frio, observando os primeiros raios de sol furando a noite, ultrapassando as montanhas e indo morrer nas águas sagradas. Aguardou o sol clarear minimamente a trilha à base de pedra na beira do rio.

Virou-se para a imagem, agora quase da sua altura. Olhos nos olhos, agradeceu-lhe pelo ano transcorrido, as alegrias, a ajuda lhe concedida, a proteção, coisas de mãe. Levantou a pesada estátua, escorou-a nos ombros e seguiu em peregrinação até o altar de pedra. Durante a caminhada, um pequeno barco a remo atraiu sua atenção, distraindo-lhe de suas preces.

Colocou a estátua sobre a pedra. Retirou, com todo o respeito, a coroa dourada e o manto da santa. Chegara a hora de banhá-la no rio, cerimônia mística para atrair as graças da Padroeira, como os padres faziam escondido com a imagem original no dia doze de outubro, segredo conhecido por poucos.

Antes que pudesse prosseguir com a cerimônia, o barco tocou na margem e um homem desceu. O remador fora atraído pelos reflexos do camisolão e da coroa. Puxou a embarcação para a terra, colocando-a próximo do barco azul do sítio. Caminhou em direção à estátua desejando bom dia. O devoto, contrariado com a interrupção, não respondeu. O curioso olhou a imagem.

- Ė Nossa Senhora e Aparecida?
- Sim.
- Desculpe minha franqueza, acho uma bobagem adorar estátuas. Certo estava aquele pastor que chutou uma imagem da Nossa Senhora na televisão.
- Aqui ele quebraria o pé, bronze puro.
- Acho religião uma invenção para enganar o povo e deixá-lo satisfeito na pobreza, enquanto poucos desfrutam da riqueza, como você. Invenção do homem que tem medo de morrer. Procura a vida eterna inventando deuses e paraísos. Acha que há vida depois da morte. Pra mim, morreu, morreu, acabou.
- Não acho.
- Noto. O que você vai fazer com a estátua?
- Uma cerimônia religiosa particular.
- Posso assistir? Não acredito nessas bobagens, mas gosto de ver rituais.
- Eu falei que é particular. Gostaria que você saísse do meu sítio.
- Tá bom, não precisa ser grosso, assisto da água. Vou filmar tudo.

O homem foi em direção ao seu barco. O devoto de Nossa Senhora desesperou-se. Como fazer a cerimônia com ele filmando? Ela só tinha efeito se sigilosa! E realizada hoje, dia da Padroeira. Do contrário, um ano inteiro sem proteção! Sem proteção!!!. Correu em direção aos barcos, pegou um remo do barco azul e acertou o visitante na cabeça, que caiu na sua embarcação. Ele bateu mais algumas vezes no outro, até passar o surto. Então viu o sangue, muito sangue, seu corpo tremeu todo, perdeu o equilíbrio e caiu. Ficou prostrado olhando a santa de longe. Fez umas preces e pediu conselhos para a Padroeira. Será que já tinha acabado a proteção conseguida com a cerimônia do ano passado? Não acreditando nisso, insistiu nas preces e no pedido de orientação, mãe me ajude!!! O sol conseguiu ultrapassar as montanhas e mostrar sua força, dourando as águas do Paraíba do Sul. Sua mente se iluminou: o milagre da santa, encontrada por pescadores naquele rio, que trouxera o homem e que também o levaria. Levantou-se, foi ao altar de pedra e pegou o manto. Voltou ao barco do invasor. Com cuidado, constatou que ele, mais que imóvel, morrera. "Morreu, morreu, acabou", recordou. Ajeitou-o no meio do barco, cobriu-o com o manto sagrado, tirou seu remo sujo de sangue e empurrou o barco para dentro do rio. Ficou alguns minutos vendo o barco ser levado lentamente pela correnteza. Calculou que em algumas horas ele passaria por Aparecida, com sorte poderia ser recolhido como a santa. Milagre!

Lavou o remo, banhou a santa, lavou-se nas águas do rio, purificados! Logo estaria mais um ano seguro, sob a proteção da Padroeira, da santa mãezinha dos brasileiros, da poderosa Nossa Senhora de Aparecida. Colocou a santa no altar de pedra e ia continuar com a cerimônia religiosa secreta quando...

- Pai, por que você bateu no moço?

José FRID

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Avó tão jovem....



Hoje, vinte e seis de julho, tornei-me avó. Jovem, jovem, culpa da minha filha. Fiquei grávida aos dezesseis, ela também quis assim, imitadorazinha barata. Culpa minha, minha máxima culpa, sempre a estimulei ficar parecida comigo, era minha bonequinha, gostava de vesti-la igual a mim. Depois de tudo que fizemos para sermos iguais, era de se imaginar que ela também queria ter filho aos dezessete. Era o que faltava, pois eu sou mãe e ela só filha. Mas a danada não ficou satisfeita com o filho, a mesma idade, quis me imitar em tudo. Tudo! Tinhosa, armou tudo nas minhas costas. Eu, trinta e quatro anos e já avó.

Quem vê nós duas juntas diz que somos irmãs ou primas. Ela se veste com minhas roupas, imito o comportamento dela e de suas amigas. Sou um pouco infantil, reconheço, ela muito madura. Ela é um pouquinho mais alta, nada que um saltinho não resolva. Cintura igual, boca igual, iguais olhos, sobrancelhas, cabelos. Trocamos roupas, sapatos, lingeries. Temos o mesmo timbre rouco sexy da Débora Seco. Sucesso com os homens, inveja nas mulheres.

Meus seios são iguais aos delas. Não, os delas que são iguais aos meus, nasci primeiro. Pequenos, duros, bicudos. As nádegas são um pouco diferentes, meu bumbum é mais durinho, empinado, muito exercício. Ela é preguiçosa, mas uma calcinha justa resolve. Na hora do vamos ver, do rala e rola, como perceber a sutil diferença? Só sendo viado. O ventre e a depilação também são quase os mesmos, não dá para saber quem é quem. Só se Jorge fosse viado.

Tudo igual, mas tenho que reconhecer uma diferença entre nós: ela é muito mais inteligente, esperta e determinada do que eu. Nunca teria condições de imaginar essa situação, armar o que ela fez, de levar até o fim o plano maluco, tudo para ser igual a mim. Tadinha, tudo culpa minha, mexi com sua cabeça com minhas histórias, seu nascimento, a emoção de ser mãe muito nova...

Jorge, coitado, não teve qualquer chance! Eu dormindo, já era tarde, ele chegando bêbado do jogo das terças, ela com o bote armado, se oferecendo na penumbra, dócil, sedenta, com minhas roupas, meu perfume. Como ele poderia saber que estava transando com uma e não com a outra? Nunca!

Foi com imensa alegria que ela contou que estava grávida. E eu não pude falar nada, fui mãe aos dezessete, que exemplo diferente poderia dar para ela?

Ela se sente realizada, pensa que agora está igual a mim em tudo: mãe aos dezessete de uma menina que também é filha de Jorge, seu pai. Vendo seu rostinho feliz  com o neném, não tenho coragem de contar-lhe que ela é fruto de um carnaval na praia e que Jorge só apareceu na minha vida muito depois....



José FRID

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Uma criança tão notável....

Minha filha nasceu no dia em que a Grande Guerra começou. Nos momentos de silêncio durante o trabalho de parto, escutei as explosões, imaginando enquanto mergulhava em cinco minutos de sono, se o bombardeio havia precipitado as contrações, ou se ela era uma criança tão notável que sua entrada no mundo deveria causar uma guerra, um rearranjo dos planetas não inteiramente dela própria.

My daughter was born the day the Long War began. In the quiet times during labor, I listened to the explosions, wondering as I drifted into five minutes' sleep whether the bombing had precipitated the contractions, or whether she was so remarkable a child that her entrance into the world should cause a war, a rearrangement of planets not entirely her own.

Gretchen Herbkersman in Thor, The Paris Review,  issue 62, summer 1975

Tradução de José FRID


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Não parta!

E é por isso que grito, esperneio: não parta! Não é justo! E é por isso que berro, enquanto espanco o seu caixão de madeira polida: tirem a minha mãe daí! Lanço as mãos ao ar como os que não têm razão, como os únicos que têm razão, e repito: abram o caixão! Mas estão todos sem jeito e envergonhados: coitadinha dela, era tão próxima da mãe. Eles sentem pena, mas não me ouvem. É um dia quente de sol, como não devem ser os dias em que partem pessoas queridas. Eles descem o caixão e com largas pás cavam a terra. Não há flores, elas não são permitidas. Há pedras. Eles cobrem o caixão com a terra, deixam você lá dentro, sozinha, e eu aqui fora, sozinha. Paro de gritar, mas me recobro da certeza de estar assistindo a uma grande injustiça, talvez a pior de todas. E penso que se você estivesse aqui tudo seria diferente, que se estivesse aqui certamente me ouviria, abriria o caixão e se tiraria de lá, você se levantaria e viria na minha direção, pegaria nos meus braços e me diria que não há por que sofrer. Se você estivesse aqui certamente secaria minhas lágrimas que caem agora, enquanto lhe dirijo a palavra e você não me escuta, você já não pode me escutar. 

 Tatiana Salem Levy in A chave de casa, Record, pág.72

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Pai e filho....

Meu menino sai apressado, fico olhando e pensando que as distâncias foram se insinuando cada vez mais e que desta vez é para sempre, e que de alguma forma fomos nos perdendo um do outro, e que por mais que me alegre com o vento que ele ergue quando caminha, preferia que estivéssemos outra vez na areia, olhando o mar, cheios de assombro.



Eric Nepomuceno in Antologia pessoal, pág. 99

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Perdido

Uma vez me perdi. Tinha seis ou sete anos.Vinha distraído e de repente não vi mais meus pais. Me assustei, mas logo retomei o caminho e cheguei em casa antes deles - continuavam me procurando, desesperados, mas naquela tarde achei que tinham se perdido. Que eu sabia voltar para casa e eles não.

Você tomou outro caminho, dizia minha mãe, depois, com os olhos ainda chorosos.
Foram vocês que tomaram outro caminho, pensava eu, mas não dizia.

Alejandro Zambra in Formas de voltar para casa, Cosac Naify, 2014, pág.11

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Carro antigo...

Observo os carros, conto os carros. Me parece triste pensar que nos assentos traseiros vão meninos dormindo, e que cada um desses meninos recordará, alguma vez, o antigo carro em que anos atrás viajava com seus pais.


Alejandro Zambra in Formas de voltar para casa, Cosac Naify, 2014, pág.157

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

As camisas de meu pai

Guardei as camisas de meu pai numa gaveta durante meses. Desde então aconteceram muitas coisas. Desde então Cláudia se foi e eu comecei a escrever este livro.

Olho agora essas camisas, estendo-as sobre a cama. Gosto de uma especial, cor azul petróleo. Acabo de prová-la, definitivamente fica pequena em mim. Olho-me no espelho e penso que a roupa dos pais deveria sempre ficar grande em nós. Mas penso também que precisava disso; que às vezes precisamos nos vestir com a roupa dos pais e nos olhar demoradamente no espelho.


Alejandro Zambra in Formas de voltar para casa, Cosac Naify, 2014, pág.133