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segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Antes que elas cresçam


Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer "bonne route, bonne route", como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito "drive-in", ao Tablado para ver "Pluft", não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.

No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Conjugação - Affonso Romano Santanna

Conjugação

                    Eu falo
                    tu ouves
                    ele cala.
                    Eu procuro
                    tu indagas
                    ele esconde.

                    Eu planto
                    tu adubas
                    ele colhe.

                    Eu ajunto
                    tu conservas
                    ele rouba.

                    Eu defendo
                    tu combates
                    ele entrega.

                    Eu canto
                    tu calas
                    ele vaia.

                    Eu escrevo
                    tu me lês
                    ele apaga.


Affonso Romano Santanna 

segunda-feira, 24 de abril de 2017

ÀS VEZES O POEMA CAI COMO UM RAIO - Affonso Romano de Sant'Anna



Às vezes, o poema cai  como um raio
em cima de você.

Às vezes o poema, como um raio,
cai longe de você
e chegam apenas os ecos do trovão.

Você não o mereceu.
Não foi fulminado pela luz
e pode, quando muito,
ouvir os ruídos
do que se perdeu.


Affonso Romano de Sant'Anna

sábado, 22 de abril de 2017

Pequenos assassinatos - Affonso Romano de Sant'Anna

PEQUENOS ASSASSINATOS

Vegetariano
 não dispenso chorar
sobre os legumes esquartejados
no meu prato.

Tomates sangram em mim boca,
alfaces desmaiam ao molho de limão-mostarda-azeite,
cebolas soluçam sobre a pia
e ouço o grito das batatas fritas.

Como.
Como um selvagem, como.
Como tapando o ouvido, fechando os olhos,
distraindo na paisagem o paladar,
com a displicente volúpia
de quem mata para viver.

Na sobremesa
continua o verde desespero:
peras degoladas,
Figos desventrados
e eu chupando o cérebro
amarelo das mangas.

Isto cá fora. Pois lá dentro
sob a pele, uma intestina disputa
me alimenta: ouço o lamento
de milhões de bactérias
que o lança-chamas dos antibióticos
exaspera.

Por onde vou 
-é luto e luta.

Affonso Romano de Sant'Anna 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Silêncio Amoroso 2


Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.



O silêncio, aprendo,
pode construir. É um modo
denso/tenso
– de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.


Affonso Romano de Sant'Anna

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Reflexivo



O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.


Affonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 20 de maio de 2015

PERDAS POÉTICAS


Perco, em média, três poemas por semana
por desatenção e desmazelo.
Ainda há pouco um solicitou-me a atenção
e perdulário fingi não vê-lo.

Ah, o que perco por soberba
o que perco talvez por não aceitar
o que eu mesmo me ofereço.

Os que me vêem passar
me pensam rico, no entanto,
o que perdi não tinha preço.

Affonso Romano Santanna in Poesia Reunida, vol 3 L&PM. p 61

sábado, 17 de maio de 2014

Sobre "A maçã no escuro", de Clarice Lispector

O romance de Clarice é uma alegoria não só sobre o processo de criação e recriação do indivíduo, mas uma alusão à trajetória de qualquer criatura que queira assumir o embate e a alteridade entre o eu e o outro, entre o eu e o mundo. O leitor visceralmente leitor, que não escritor explícito, aprenderá aí a fazer uma releitura de seu espanto e perplexidade diante da vida. E quem é escritor, quem carece não apenas de embarcar e viajar nas palavras alheias, mas construir, elaborar o seu próprio discurso, esse encontrará aí pistas e trilhas, mas sobretudo o consolo de descobrir essa realidade que funciona como desafio: um lápis e uma folha em branco - nunca ninguém teve mais do que isto.


Affonso Romano De Sant'Anna in Com Clarice, Editora Unesp, 2013


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Escrever é ...


Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu.


Clarice Lispector, citada por Affonso Romano De Sant'Anna in Com Clarice, Editora Unesp, 2013


terça-feira, 13 de maio de 2014

Escrever é....

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mais aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva, então, é ler "distraidamente".


Clarice Lispector, citada por Affonso Romano De Sant'Anna in Com Clarice, Editora Unesp, 2013



sábado, 10 de maio de 2014

Somos todos poetas

O homem, quando fala, se expressa, está criando. Nesse sentido é que todos são genericamente poetas, isto é, criadores.

Affonso Romano De Sant'Anna in Com Clarice, Editora Unesp, 2013

sábado, 3 de maio de 2014

A Peste, de Albert Camus:


Demonstra muito bem a que ponto chegar um verdadeiro criador sem os malabarismos linguísticos e as invenções formais comuns à maioria dos romancistas modernos.



Affonso Romano De Sant'Anna in Com Clarice, Editora Unesp, 2013

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Clarice Lispector como leitora crítica, por Affonso Romano de Sant'Anna

Anotação de Affonso Romano de Sant'Anna, transcrita no livro "Com Clarice", Editora Unesp, 2013, páginas 16/18:



Na década de 90, andei revirando os arquivos do extinto Instituto Nacional do Livro, que foram parar na Biblioteca Nacional, e descobri uma série de pareceres de escritores recomendando, ou não, a compra de livros para bibliotecas públicas. Ali está, sigilosamente, o que alguns de escritores realmente pensam sobre obras de seus colegas. Cheguei a copiar alguns deles, pois têm um valor crítico histórico.

De Clarice encontro três julgamentos de obras alheias. Dois são interessantes. Comentando "Roteiro poético", de Vivaldina Queirós Martins , diz que o livro "comoverá uma empregada doméstica ou uma jovem ou senhora que vende atrás de um balcão", mas, embora elas tenham direito de "se sentirem compreendidas e expressas", Clarice é contra a aquisição do livro porque o INL "não pode descer a um nível tão baixo de literatura".

Já outro parecer, de 19.11.1969, é mais curioso. Já que esse tipo de documento não quer ser um blá-blá-blá teórico, mas tem que ser claro, direto, a Clarice aborda os limites e o conflito entre a leitora e a crítica, entre a literatura mais sofisticada e a literatura mais popular. Por isto, comenta: "O açude e outras histórias", de Salm Miranda, e "Giroflê, Giroflá", de Cosette Alencar , assinalando: "Ao ler ambos os livros procurei manter-me numa situação de crítica, e de leitora, e não de escritora. Como escritora que sou, não gostei dos livros. Mas acontece que os livros não são publicados para escritores lerem, e sim para o público. Como escritora repugna-me o lugar-comum tão usado, por exemplo, em 'O açude e outras estórias'. No entanto, analisando a expressão 'lugar comum', vê-se que este é dirigido ao homem comum, e mesmo necessário para uma comunicação imediata. E o público é, com escessões(sic), feito de homens comuns.

A trama de ambos os livros tem interesse, sendo melhor o romance 'Giroflê, Giroflá' de Cosette Alencar. Em 'O açude e outras estórias' há momentos de franco mau gosto, para mim como escritora. Mas de novo me pergunto se para um leitor comum – ávido que está de ler literatura nacional, sobre assuntos nacionais, e não só a traduzida – pergunto-me se isso terá maior importância. É preciso incrementar a produção de literatura brasileira, e não ser demasiado esnobe em relação a ela.

Nos dois livros, de repente o leitor, no caso eu, nota que está comovido. E essa qualidade de provocar emoção não é de se desprezar, pelo contrário. E vem a pergunta minha como leitor apenas: que importa o lugar-comum ou a ausência de originalidade maior, se ambos os livros tocam, como se diz, 'nas cordas sensíveis do leitor', estou usando um lugar-comum, eu me comuniquei. E é o que acontece com os dois livros medíocres: eles se comunicam com o leitor.

Sou portanto favorável à compra, pelo Instituto Nacional do Livro, de número de exemplares que acharem por bem determinar, certa que estou de que as livrarias do Brasil estão repletas de livros estrangeiros que não são melhores que os dois citados. 

Assinado, Clarice Lispector."

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Com Clarice

Delicioso livro escrito a quatro mãos por Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna para recordar e homenagear Clarice Lispector, de quem foram amigos próximos e são grandes admiradores. Quatro mãos? Não! Duas a duas, pois eles escreveram os textos separadamente. Ou não, afinal são um casal.

O livro é dividido em cinco partes. Na primeira, separados, ARS e Marina escrevem sobre a Clarice, lembrando a convivência deles com ela. Na parte dele, destaco o trecho no qual transcreve a avaliação feita por Clarice de dois livros. Ela começa por demolir os livros, cheios de "lugares-comuns", para depois reconhecer que eles têm a capacidade de provocar emoção,  que é valioso para o leitor. (Leia acima em outro post)


A segunda parte é composta por dois textos de Marina Colasanti: um conto no qual a Clarice é personagem, escrito a partir de fatos narrados por ela; uma crônica sobre a Clarice, com lembranças de Marina. 

Na terceira parte são apresentados três ensaios (crítica literária) escritos por ARS sobre a obra de Clarice. Textos técnicos, mas muito gratificantes para quem se dispuser a ler (eu, por exemplo). O primeiro, escrito em 1962, quando ele ainda era um estudante de Letras, é sobre o livro "A maçã no escuro", publicado em 1961. O segundo ensaio analisa os contos de "Laços de família" e "Legião estrangeira", destrinchando todos os contos dos dois livros e revelando a estrutura que perpassa toda a obra. Muito bom! O terceiro ensaio, sobre "A paixão segundo G.H" é muito interessante, pois o escritor utiliza os recursos estilísticos da autora no seu texto, mostrando, na prática, os pontos que quer destacar.

A quarta parte é integrada por seis crônicas escritas por Affonso Romano De Sant'Anna com recordações da Clarice ou sobre os textos dela.

A quinta parte é constituída pela entrevista concedida pela Clarice Lispector no Museu da Imagem e do Som, em 1976, a Marina, ARS e João Salgueiro, que permite que se conheça mais um pouco da Clarice.


Boa leitura!

Com Clarice - Marina Colasanti e Affonso Romano De Sant'Anna, Editora Unesp, 2013

José FRID

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

VIDA




A vida
ávida.

A vida
havida.


a vida
ah!vida.
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Affonso Romano Santanna in Vestigios, Rocco

sábado, 17 de novembro de 2012

APRENDIZADOS



Uns aprendem a nadar
Outros a dançar, tocar piano,
Fazer tricô e a esperar.


Na infância cai-se
Para se aprender a andar.
Cai-se do cavalo e do emprego
Aprendendo a viver e a cavalgar.


Em alguns aprendizados
Chega-se à perfeição.


Em alguns.


No amor, não.




Affonso Romano Santanna in TEXTAMENTOS, Rocco,

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

APRENDIZADO



Estou aprendendo a enterrar amigos,
corpos conhecidos, e começo as lições
de enterrar alguns tipos de esperança.

Ainda hoje
sepultei um braço e um desejo de vingança.
Ontem fui mais fundo:
sepultei a tíbia esquerda
e apaguei três nomes da lembrança.



Affonso Romano Santanna in POESIA REUNIDA- vol 2 p.215

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O LÁPIS E A FOLHA EM BRANCO




-O que é necessário para uma pessoa vir a ser escritor?

Pergunta simples. Resposta complexa.

Clarice Lispector no fabuloso "A maçã no escuro" nos diz algo a respeito. Algo, não, muito, a respeito disto. E ter a coragem e a competência para ler, mastigar, ruminar esse manual da escrita e da vida que é esse livro, é já um teste para quem se pensa escritor. Verdade é que o bom leitor, o que não quer necessariamente ser escritor, mas se escreve e se inscreve nos livros alheios, esse, vai ter também aí a prova de suas habilidades.

-O que nos diz Clarice?

Mais ou menos no meio do romance, o personagem Martim teve um impulso de escrever. Esse impulso, esclareça-se, surge numa progressão de descobertas de sua relação com o mundo: "Como um homem que fecha a porta e sai, e é domingo. Domingo era o descampado de um homem". Ele já havia iniciado um aprendizado de observar e interpretar o seu entorno. Principiou pelo mais simples, pelo mundo mineral e vegetal. Reaprendeu a ver a natureza dentro e fora de si mesmo: as pedras, os pássaros, as vacas na fazenda. Já reaprendera a ver as roseiras, as abelhas, as samambaias e a surpreender a singularidade pungente e alarmante que cada objeto ou criatura tem. Já se aproximara de seu semelhante, estava descobrindo a mulher e o amor. Portanto, fora um longo trajeto de reelaboração interior articulado com a redescoberta do mundo.

Numa noite, dando sequência a esse percurso de pequenas epifanias, ele teve estranha necessidade de escrever: "Nessa noite, pois, ele acendeu a lamparina, pôs os óculos, pegou uma folha de papel, um lápis; e como um escolar sentou-se na cama. Tivera a sensata idéia de por ordem nos pensamentos e resumir os resultados a que chegara nessa tarde- uma vez que nessa tarde ele finalmente entendera o que queria. E agora, assim como aprendera a calcular com números, dispôs-se a calcular com palavras".

Martim, no entanto, começa a ter algumas supresas e dificuldades: "Ele não sabia que para escrever era preciso começar por se abster da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer". Surge, então, uma série de pequenos desconfortos até físicos que os criadores sentem nessa circunstância. Alguns, na hora de escrever, começam a se distrair involuntariamente. Resolvem dar um telefonema. Levantam-se para ir pegar água na geladeira. E querendo e precisando escrever, mas disfarçando a necessidade, começam a arrumar objetos que os cercam.

Como todo ato de criar, escrever (às vezes, até mesmo uma simples carta, relatório ou trabalho escolar), é colocar-se na borda do abismo. Martim "hesitava e mordia a ponta do lápis (…) de novo revirou o lápis, duvidava e de novo duvidava, com um respeito inesperado pela palavra escrita. Parecia-lhe que aquilo que lançasse no papel ficaria definitivo, ele não teve o desplante de rabiscar a primeira palavra. Tinha a impressão defensiva de que, mal escrevesse a primeira palavra e seria tarde demais".

Ler Clarice, minhas amigas e amigos, é uma das angustiantes e deliciosas responsabilidades da vida intelectual. Lamento não poder reencenar aqui a densidade verbal do que ela segue narrando naquele livro. Seu personagem segue sofrendo para encontrar seu canal de expressão: "tudo o que lhe parecera pronto a ser dito evaporava-se, agora que ele queria dizê-lo". E "de repente se sentiu singelamente acanhado diante do papel branco como se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que já existia mas a de criar algo a existir".

Em meio às dificuldades em realizar algo que anteriormente lhe parecera tão simples, indaga-se o personagem se "teria havido um erro no modo como ele se sentara na cama ou talvez no modo de segurar o lápis, um erro que o depusera diante de uma dificuldade maior do que ele merecera ou aspirava? Ele mais parecia estar esperando que alguma coisa lhe fosse dada do que dele próprio fosse sair alguma coisa, e então penosamente esperava". Enfim, ajeitando e reajeitando-se fisica e animicamente, "como um dócil analfabeto estava na situação de pedir a alguém: escreva uma carta para minha mãe dizendo o que penso. 'Afinal que é que está acontecendo?' Inquietou-se de repente. Pegara no lápis com a modesta intenção de anotar seus pensamentos para que se tornassem mais claros, fora apenas isso que pretendera! Reinvidicou irritado, e não merecia tanta dificuldade".

E a autora vai enfatizando aqui e ali- "desolado, ele provocara a grande solidão. E como um velho que não aprendeu a ler ele mediu a distância que o separava da palavra". Surge, então, dentro do texto de Clarice, a observação mais simples e aterradora em relação ao gesto da escrita: "-Que esperava com a mão pronta? Pois tinha uma experiência, tinha um lápis e um papel, tinha a intenção e o desejo- ninguém nunca teve mais que isto".

Um lápis e um papel . E a tremenda solidão e responsabilidade. O abismo. Abismo onde se perder e se reencontrar. Onde outros se perdem e se reencontram através da escrita alheia.

O romance de Clarice é uma alegoria não só sobre o processo de criação e recriação do indivíduo, mas uma alusão à trajetória de qualquer criatura que queira assumir o embate e a alteridade entre o eu e o outro, entre o eu e o mundo. O leitor visceralmente leitor, que não escritor explícito, aprenderá aí a fazer uma releitura de seu espanto e perplexidade diante da vida. E quem é escritor, quem carece não apenas de embarcar e viajar nas palavras alheias, mas de construir, elaborar o seu próprio discurso, esse encontrará aí pistas e trilhas, mas sobretudo o consolo de descobrir essa realidade que funciona como desafio: um lápis e uma folha em branco- nunca ninguém teve mais do que isto.


Affonso Romano de Sant'Anna

quarta-feira, 21 de março de 2012

AQUELE MENINO


Saudade de um eu
de que me dão notícia
como do irmão gêmeo
que se perdeu
ou de algo mais distante:
um primo ou conhecido
que usou um terno meu.


Me dizem
que conversaram com "ele"
ou "eu"
há quem o tenha tocado
e dele ouvido frases de amor
e pasmo.


Viram-no descendo ruas do interior
pregando nas esquinas
desejando suas vizinhas
depois escalando árvores, edifícios, pirâmides
procurando algo que se perdeu
lendo hieroglifos
na biblioteca de Babel.


Outros o viram grave e irônico opinando
ou desatento olhando para o lado
de dentro
de insolúveis questões.
Para alguns parecia apressado
como se fosse buscar o futuro
ou inaugurar o passado.


Gostaria de rever esse menino
que dizem que fui eu.
Então o acolheria
incorporando-me ao que fui
e há muito se perdeu.


Enfim lhe pediria
aceite-me de volta
não sou teu pai
sou filho teu.


Affonso Romano Santanna in "Vestígios"

sábado, 17 de março de 2012

Liberdade x Amor


No Jornal da Band(Boechat), hoje, dia 14, às 7 e tantas, reportagem sobre uma solitária arara Canindé, que todos os dias sai da Floresta da Tijuca, vôa 5 km e pousa numa gaiola de araras no Zoo para namorar. Pediram-me uma reflexão em forma de poesia que é esta:




Liberta-me
de minha liberdade
diz a arara Canindé
ao seu amado
preso
na gaiola do zoológico.



Aprisiona-me contigo
pois enclausurada
ao teu lado
enfim
-serei livre.



O amor aprisiona?

O amor liberta?

O melhor amor é aquele

em que a gaiola

-está aberta.



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