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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Na Escuridão Miserável - Fernando Sabino

Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em funcionamento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

- O que foi, minha filha? – perguntei, naturalmente, pensando trata-se de esmola.
- Nada não senhor – respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
- O que é que você está olhando aí?
- Nada não senhor – repetiu – Tou esperando o ônibus ...
- Onde é que você mora?
- Na praia do Pinto.
- Vou para aquele lado. Quer uma carona?

Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:

- Entra aí, que eu te levo.

Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:

- Como é o seu nome?
- Teresa.
- Quantos anos você tem, Teresa?
- Dez.
- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
- A casa da minha patroa é ali.
- Patroa? Que patroa?

Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia à mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.

- Hoje saí mais cedo. Foi jantarado.
- Você já jantou?
- Não. Eu almocei.
- Você não almoça todo dia?
- Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim.
- E quando não tem?
- Quando não tem, não tem – e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos – um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês:
- Mas não te dão comida lá? – perguntei, revoltado.
- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse para eu não pedir.
- E quanto é que você ganha?

Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso era de voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.

- Como é que você foi parar na casa dessa ... foi parar nessa casa? – perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da praia do Pinto. Ela disparou a falar:
- Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, obrigado.

Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da praia do Pinto.

Fernando Sabino in "A Companheira de Viagem", 1965

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A Companheira de Viagem - Fernando Sabino




Último livro que li em 2011. O Mestre Sabino mostra sua arte. (Capa da edição do Círculo do Livro)


Publicado inicialmente em 1965, o livro é constituído por 39 crônicas originalmente publicadas em revistas, mas que têm "tratamento de ficção característico dos contos e das histórias curtas", como ressalta o autor no preâmbulo da obra. É a velha questão de definir o que é a crônica, trabalho para os críticos como Antonio Cândido.



Como toda coletânea, os textos escolhidos não são do mesmo nível. No caso de crônicas, face à variedade de formas, de temas,  dos veículos onde foram publicadas e da época, a desigualdade é notória.


O último texto do livro, denominado "A Última Crônica", que o autor classifica como conto, é excepcional. Curta, direta, lírica, emocionante. Quisera um dia eu conseguir escrever assim! É conto ou crônica? Não importa, é lindo! Eu classificaria como crônica, fruto da observação do cotidiano. Relata a modesta comemoração do aniversário de uma garotinha num bar da Gávea (Rio de Janeiro). Leia!! O texto integral está aqui no blog mais abaixo. Leia!!!


A crônica "Matar ou Morrer" é outro belo texto. Trata do encontro de "mocinho e bandido" fantasiados no carnaval, quando o filho do narrador é surpreendido pelo bandido e fica inconsolável. O pai tenta resolver o problema do filho procurando o "bandido" de 12 anos para novo duelo.


"Confusão com São Pedro" é ótima e mostra o diálogo desesperado de uma mulher negociando com São Pedro durante um voo turbulento. Ela está sozinha e o marido está no voo seguinte. Hilário!


"Na escuridão miserável" narra o encontro do autor com uma menininha de dez anos que já é explorada por uma família de "bem". Triste, angustioso, verdadeiro.


Podemos destacar, ainda, "Fícus italiano", sobre os problemas de um homem que resolve ter uma planta no escritório, "Fome de amor", na qual um prisioneiro relembra seu relacionamento com uma mulher que o trocou por outro, ao mesmo tempo que almoça, "Hay que vigilar", as desventuras do personagem com o conserto de eletrodomésticos, "A companheira de viagem", a burocracia para cobrar a passagem de um macaquinho: ele é ave, gato ou cachorro?, "Não estamos sós", dois bêbados decidindo se são ou não alcoólatras, "Para inglês ver", burocracia para visitar um amigo num navio estrangeiro parado no porto, atualíssimo, "Frases célebres", torneio de frases célebres por pessoas não tão cultas, "A quem tiver carro", desventuras com mecânicos picaretas,  e "A primeira valsa", recordação de um pai separado sobre o primeiro baile da sua filha.


Alguns textos dispensáveis:"O pior da morte", "O dia da caça", "Compositor", "De certa idade, senhor", "Bunab - tipo 7", "Um professor de português", "A vingança", "Escala em Curitiba", ..... o que mostra que o mestre tem altos (muitos)  e baixos (poucos),  e que é a prática que leva à perfeição. 


Conclusão: livro altamente recomendável.


José FRID



terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A última crônica - Fernando Sabino




A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.


A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.


Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.


Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.


A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.



São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.



Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.



Fernando Sabino in "A Companheira de viagem", Círculo do Livro (original de 1965)