O rádio-relógio está programado para seis horas. Levantar, tomar remédio, trocar de roupa, café da manhã, documentos, ... tudo como planejado ....não!
5:00 – Sou violentamente despertado por um som "batidão" grave: "Tum, Tum, Tum". Um automóvel parou no edifício para deixar um infeliz qualquer. Levanto, tomo meu remédio, dou uma volta pela casa, o garoto já chegou mas a menina não. Será minha filha chegando? Vai ganhar bronca dupla, por chegar tarde e por fazer barulho. Espero um, dois, cinco minutos, nada. Volto para a cama, dou a bronca quando voltar da corrida. Deito, o carro parte, o som vai diminuindo, Tum, tum, tu..., t .....
6:00 – Toca o rádio-relógio, um tapa certeiro faz ele calar-se, não quero acordar a santa que dorme a meu lado. Vamos lá, no planejamento: leite, pão, banana, roupas, tênis, documentos, chaves, celular .....
6:40 – O elevador pára no térreo, entra vizinho, bom dia, bom dia: cabelos longos, barbudo, tatuagens por todo lado, camiseta preta, jaqueta de couro, jeans e um CD na mão. Saio na garagem. Bom dia, bom dia. De que lugar do passado veio o cara?
6:45 – Pelo celular pergunto à filha se ela esqueceu o caminho de casa (pai é assim, sempre direto), ela responde que já está chegando, eu acredito, ela deseja-me uma boa corrida, bom dia! Céu nublado, frio. Caio na Ricardo Jafet, pista livre, dá vontade de correr, mas lembro da Dulce e da Zenaide e seus radares diabólicos, onipresentes, oniscientes, e me controlo. Elas não verão a cor do meu dinheiro! Um carro sai do motel e quase bate em mim, calma rapaz, a noite não foi boa ou a menina perdeu a hora de chegar em casa? Mais para frente, outro motel, um carro sai de ré. Tá caro ou a "mina" negou fogo?
7:05 – Entro na Imigrantes. Muitos ciclistas, sempre em grupos de três, traje completo, roupas apertadas coloridas, sapatilhas, capacete, óculos. Domingão de velocidade!. Bicicleta é a três? Vou perguntar ao Gilberto, especialista em ciclismo. Enquanto isso, Roberta Sá canta e encanta no CD, preenchendo o vazio da manhã. Tempo fechado, garoa. Um ciclista sozinho. Esse vai trabalhar. No meio da estrada, movimento de terra, uns pilares e placas enormes: é o RodoAnel. Tinha que começar com um viaduto sobre a Imigrantes, a obra mais visível. Ano que vem tem eleição, não é mesmo?
7:12 – Pedágio (o mais caro do Brasil?). Saco meu único dinheirinho, uma nota de vinte. Sexta foi greve dos bancários, só lembrei do dinheiro à noite, mas sem coragem para ir no caixa-automático. Meu sobrinho foi assaltado às seis e meia da manhã, indo para o trabalho. E no Rio de Janeiro! Ainda dizem que ladrão não acorda cedo. Ou será que eles estariam indo dormir?
7:33 – Chuva forte em Cubatão. Ácida? Fábricas descarregam grossas colunas brancas pelas chaminés. Fumaça? Vapor? Podem ser mortais, mas o visual é lindo, o branco sobre o céu azul-chumbo. Se existe um lugar para se ter céu azul-chumbo é Cubatão! Chumbo mesmo! Viaduto em curva, subida, descida já com tempo firme, vejo o Guarujá ao longe, sol? Chão seco, nublado, friozinho leve, gostoso para correr, tomara que o tempo não abra. Cruzo a cidade, ela ainda está dormindo.
8:00 – Praia do Tombo, Forte dos Andradas. Estou sozinho no Guarujá porque a minha turma foi correr na fábrica da Wolkswagem, na linha de montagem, atrás do sorteio de uma Parati. Chego na porta do quartel, muitas bicicletas por ali. Os corredores são ciclistas também. Velocidade máxima! O Exército cedeu um ônibus para levar o pessoal até a saída da corrida na Fortaleza da Barra. Afinal é a Corrida dos Fortes! No duplo sentido.
8:13 – O ônibus lota. Só papo de corredor: sol vai aparecer ou não, tempos de provas, tênis, percursos, corridas, isotônicos, alongamentos, etc. Meu companheiro de banco conta que correu a Meia de Buenos Aires, faltou água para os atletas, num calorão de matar. Ele pergunta quanto vou fazer, estimo em uma hora, uma e cinco, ele pensa em fazer em quarenta e cinco. Os atletas exibem seus currículos: camisetas de provas anteriores – Meia do Rio, Maratona de São Paulo, Revezamento Pão de Açúcar, Bombeiros, Nike, Corpore, Meia de São Paulo, Revezamento das Praias, eu mesmo estou com a camiseta amarela dos 25 Km de Bertioga. Um destoa: camisa do Flamengo! Um carioca perdido no Guarujá? Caiu do navio em Santos?
8:25 – O ônibus parte devagar, ruas de terra, areia. Chega no pé do morro, o motorista põe a primeira, o coletivo geme, geme, se arrasta lentamente, sobe devargazinho, quase indo para trás. Os corredores se assustam com a montanha, "vamos ter que subir isso?" O ônibus consegue, enfim, chegar ao topo e, imediatamente, despenca em alta velocidade, qual uma montanha russa, curvas à direita, curvas à esquerda, tão rápido que os passageiros não conseguem vislumbrar a ladeira que teremos de subir, têm que evitar serem projetados pela janela do bólido.
8:35 – Enfim ele estanca na Fortaleza. Corredores saltitam por ali. Um canhão anti-aéreo no centro do campo de futebol. Sistema de som com música americana muito alta. Guarujá, Brasil, não podia ser uma MPB, um samba? O tempo fecha, venta. A turma está trotando no campo para se aquecer. Outros fazem alongamento no chão, nas cercas, nos postes, etc. Faço alongamento debaixo de umas árvores. Muitos pequenos buracos no chão, reparo que é um manguezal, buraco de caranguejo! Saio rápido, antes que um grude na minha perna e adeus corrida!
9:00 – Pelotão pronto e nada. Cadê o tiro de largada? Reparo nos atletas em volta de mim. Quem vai chegar primeiro, na minha frente? O flamenguista? Não! Aquele cara com a camiseta da Meia do Rio? Não! Aquela baixinha? Não! A alta e magra? Sei não, ta com cara que corre. O grisalho? Acho que não. A de short camuflado? Pode ser, mas está meio cheinha. Mas a aparência pode enganar
Chove. Os corredores estão indóceis. "Olha a hora", gritam. A chuva fica mais forte, bate o vento: "Uuuuuuuuu" grita a multidão arrepiada. A chuva pára. O vento amaina. Tá tudo pronto para a partida. Cadê a saída?? Uma viatura oficial. Chegou quem faltava: o general. Agora vai.
9:04 – Tiro de canhão, BUMMMM, ou melhor, BBBUUUUUMMMM!!!!!. (ou seria PPPPAAAAAMMMMM!!!!! Ou PPPOOOOUUUUU!!!?) Um terço dos corredores parte decididos para a frente, devem ser os militares, outro terço se agacha com o estampido seco (sou desse grupo) e o resto recua, assustados. Mas logo o grupo todo se recompõe. Todos acertam os cronômetros, precisamos saber o ritmo de corrida, um por cinco, por três, por seis, cada um na sua, o importante é cumprir a sua planilha individual e completar a prova em bom estado.
KM 1 – A turma está animada, muita conversa, o trecho é plano, os retardatários estão chegando, outros começando a se distanciar. Jovens, velhos, mais ou menos (olha eu aí), homens, mulheres, gordos, magros, altos, baixos, o que importa é o domingão com o pé na estrada. O tempo está seco, meio frio, agradável para correr. A estrada está passando pela planície, a ameaçadora montanha está ao longe, ainda não assusta. Numa das curvas deu para ver os prédios de Santos.
KM 2,5 – Chegou o primeiro posto de água: tubos de concreto com copos de água e gelo – os atendentes tinham que pescar os copinhos no tubo e distribuir para os corredores, tudo precaríssimo. Conclusão: os corredores faziam fila para pegar os copos de água. Mas nada parecido com a Meia de Buenos Aires: o corredor contou que a falta de água era tanta que um argentino passou e tomou o copo das mãos dele e foi embora correndo. Mas o "hermano" levou azar, o copo estava vazio!
Eu, com muitos quilômetros rodados, e em função do tempo agradável, já tinha planejado pular o primeiro posto para evitar perder o ritmo de corrida, deixando para pegar água antes da subidona, onde, naturalmente, o meu ritmo cairia. E também já tinha enchido o "tanque" na tenda das autoridades, onde havia um garrafão de água mineral. Vou me aproximando, no meu passo marcial de ex-aluno do Colégio Militar, o soldado que toma conta da tenda vacila – "será que é uma das otoridades que vai correr?" – meneio a cabeça num arremedo de continência, encho um copo, bebo, outro copo e fui! O Golpe do "sabe com quem está falando?"
KM 3 – Passamos pela entrada de uma fazenda, vejo um gado estranho, búfalos!! Búfalos ao lado do maior porto da América Latina!! Brasil!!! A multidão de corredores vai se dispersando, conforme o ritmo de cada um. Vou passando alguns, outros me passam, as curvas vão se sucedendo, mais bois no brejo, agora do tipo que o Renan cria com incrível sucesso, um atleta ensina para outro "corta por dentro da curva que o caminho é menor e a velocidade maior" – estão vendo muita Fórmula Um!
Aquela conversa inicial vai escasseando, começo a "ouvir" o silêncio da prova, o ritmo das respirações, as passadas, estamos passando por pequenos aclives e o pessoal está se concentrando. Alguns moradores locais estão na margem da pista gritando palavras de incentivo. Procuro meu povo: o flamenguista passou por mim de passagem, a magrela alta – n.º 37 – também, a de short camuflado está a meu lado, o grisalho deixei para trás. O resto está por aí, não sei se na frente ou atrás.
KM 5 – Novo posto de água. Tendo visto o problema do posto anterior, aproximo-me gritando alopradamente (tal qual um petista) "água, água, água", com as mãos espalmadas. Os dois "aguadeiros" ficam espertos com tão dantesca aparição e pego meus copinhos sem dificuldade. Carioca, "isperrrto", trinta anos de praia ....
Subida!! Pronto!! Tá aí o que todos esperavam: a subidona. Reduzo o ritmo, a respiração fica mais intensa, jogo água na cabeça, pescoço, corredores começam a passar por mim, até mesmo alguns por quem passei lá atrás. Passa a baixinha, o "shortinho", parece que estou parado! Calma gente, tem outra montanha no quilômetro oito, vamos administrar.
Descida! Aquela do ônibus. Todos aceleramos, é hora de tirar o atraso, mas sem forçar os músculos. Bebo o restinho da água e vou. Quem forçou na subida agora está quase parado! Passo o rubro-negro, a 37, o da Meia do Rio, nem sabia que ele estava na minha frente, o grisalho tenta encostar mas escorrega na areia da curva.
KM 6,5 – Praia do Guaiuba. Trechinho plano, gostosura, ida e volta, dá para ver quem está na nossa frente, quem está atrás, muitos, muitos, não estou entre os últimos! Chega o flamenguista, chega a 37, o pessoal começa a abrir o passo, eu também, os motoristas presos nos bloqueios da corrida xingam os corredores, "cadê meu direito de ir e vir?" "Preciso comprar pão e leite para as crianças", mas os soldados permanecem impassíveis.
KM 7,5 – Último posto de água antes da outra subida, aquela maldita, quase dois quilômetros de puro aclive à beira mar. Mais três copinhos, um para dentro, outro na cabeça, pescoço, rosto, braços, o último guardo para a subida. Passo pela shortinho camuflado, pela baixinha, tô a todo gás, vejo o rubro-negro lá na frente, acabou de passar pela 37. De repente, sem avisar, passa por mim o da Meia do Rio levantando poeira, aonde ele vai com tanta pressa? Ao banheiro?
KM 8 – Entrada do Forte dos Andradas. Olha nós aqui outra vez! Mais uns metros e Subida! Agora é para valer, quase dois quilômetros de pura subida, a floresta de um lado, o mar de outro, visual lindo, pena que não dá para parar e apreciar a paisagem, é hora de trabalho, vamos lá!! Meu objetivo é subir todo o caminho sem parar. Dou uma olhada no relógio, fui mais rápido que esperava, sinal que as subidas passadas foram fracas, tenho folga, talvez dê para fazer em cinqüenta e cinco, beleza!
E subo, subo, subo, subo, subo, encontro a 37, passo por ela e escuto um "ai, meu deus", a subida é puxada, quem não se guardou, dançou. E subo, subo, cada vez mais devagar, cada vez mais difícil, cadê o fim disso!!! As curvas e a mata não deixam a gente ver muito à frente, e tome asfalto, asfalto, os corredores cravam os tênis na pista, como se não quisessem escorregar ladeira abaixo. Mas, atrás de uma árvore, eis ela, a Senhora Descida! Todos começamos a despencar, é hora de tirar o atraso, agora sem pensar nos músculos! E vamos todos, à toda, parece final de páreo ou corrida de Fórmula 1, todo mundo atropelando, um passando pelo outro, que reage e passa também, uma confusão. E desce, curva para direita, curva para esquerda, e desce e curvas e desce, última curva e a reta de chegada!
Reúno as últimas forças, os outros também, agora é tirar uns segundinhos no tempo final. Lá está a linha de chegada, as tendas da organização, a torcida, a praia. E aceleramos. Um gordinho na minha frente, passo de passagem por ele, uma mulher, passo qual o vento por ela, nem viu quem era, e estou quase lá na linha de chegada quando uma mulher encosta e quer passar, "ah, mais não vai passar não", penso eu, acelerando, "vou passar esse cara de qualquer jeito", ela pensa, atropelando, e vamos os dois no máximo até a chegada .....
KM 10 – A chegada. Emocionante. Ela ganha por um segundo!! "Por una cabeza", ou melhor, por um passo, já que o chip de tempo está amarrado no tênis. Ela sorri para mim, a falta de fôlego impede a emissão de qualquer palavra, nos cumprimentamos batendo as palmas da mão, ela saboreando sua vitória sobre mim. Respiro fundo, respira, respira, ouço um "vai Frid!", procuro o fã e é o Galvão!! Não o Bueno, o outro, muito melhor! Saúdo sua presença, já estou com o fôlego renovado, ficamos de conversar depois que eu sair da área dos corredores. Pego a camiseta, o lanchinho e a minha medalha, dourada com desenho em verde, o mapa do percurso, cordão verde-amarela, linda.
10:30 – Entrega dos troféus. Uma banda militar toca sucessos musicais, mas mais sucesso fazem os corredores de terceira idade: mulheres de 65 a 79 anos!, homens até 71! – Será que eu conseguirei correr nesta idade? E o tempo dos corredores? Sai a listagem oficial: fiz 54:31, melhor do que esperava, já mereço o chope! O flamenguista chegou na minha frente e é militar! Mas é garoto novo, 24 anos. O da Meia do Rio não foi ao banheiro não, chegou trinta segundos antes de mim. A de short camuflado chegou logo atrás de mim, depois a 37 e a baixinha. O grisalho só depois de longos três minutos.
11:00 – Agora a parte social. Percorro com o Galvão a área litorânea do forte, belíssima praia exclusiva, com palmeiras, churrasqueiras, campo de futebol, hotel, etc. É o local escolhido pelo Lulla para descansar de suas viagens. Hora de voltar. Meu carro está do outro lado do morro. O Galvão se compadece e resolve me levar até ele, eu digo que não precisa, que agüento ir andando (mentira!), não se preocupe, mas ele insiste e convida para almoçar com sua família, agradeço e digo que estão me esperando para almoçar, foi o combinado com minha mulher. Cantamos a canção da Artilharia (abraçado ao canhão morre o artilheiro.....) e partimos.
14:00 – Chego em casa, o local do descanso do guerreiro, morto de fome, os filhos estão tomando o café da manhã – isso é hora?, pergunto pelo almoço, a santa responde: "Chega a essa hora e ainda quer almoçar? Devia ter comido na praia!"
José FRID
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