quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Anjos da Sé



Um dia desses, saio do Metrô, cruzo a Praça da Sé passando pelo pregador evangélico aos berros (pleonasmo?), cumprimento o Anchieta pelas costas (quem colocou a estátua de costas para a Catedral e a praça e olhando para um decrépito prédio de escritórios?), atravesso a rua evitando ser caçado pelos ônibus, carros, motos, carrinhos de catadores de papelão etc., entro na Rua Direita e dou de cara com um anjo!


O anjo, ou melhor, a "anja" (anjo tem sexo?) caminha em minha direção carregando uma bexiga cheia de ar presa numa vareta plástica. Apressada, passa por mim num átimo, pouco posso perceber dela. Asas semi-transparentes, um pequeno colete, discreta maquiagem, cabelos presos por uma redinha com pedrinhas coloridas. Calças jeans, sandálias de salto alto, anjo moderno sim.


Ela estava acompanhada por uma jovem de traços delicados (angelicais?). Podia ser uma "cambona", se houvesse anjos no candomblé. Ambas mostraram nas faces urgência e preocupação. Dobraram a esquina e foram em direção à Catedral. Estariam atrasadas para a missa? Algum compromisso com Deus? Deus está na Sé? Ou atenderam aos berros do pastor?


Como não deu para ir atrás delas, curioso, percorro a Rua Direita no sentido contrário ao do anjo, na esperança de identificar de onde veio, podem existir outros. Chego até a Praça do Patriarca e nada. Entro na Igreja de Santo Antônio e nem sinais de seres angelicais. Nada embaixo da cobertura metálica branca horrorosa também. Desço as escadas da Galeria Prestes Maia, saio no Anhangabaú. No Vale nada também, só seres a serem resgatados por anjos, principalmente os "da guarda". Sigo o meu caminho, o dever me chama.



Dia seguinte, saindo da loja de mate e pão de queijo, quase tropeço em outra anja, nos mesmos trajes da primeira, inclusive a bola na ponta da vareta. Ela se faz acompanhar por uma menina e outra jovem. As três apressadas e preocupadas, saem da Rua do Tesouro e sobem a Álvaro Penteado, em direção da Rua Direita. Vão para a Sé também? Donde vêm?


Como a curiosidade não foi mitigada, percorro, agora, a Rua do Tesouro à busca do ninho dos anjos, se assim se pode dizer. Cruzo a 15 de Novembro. Dois caminhos possíveis: a ladeira da General Carneiro, e a rua Anchieta, acesso ao Páteo do Colégio.


No local da fundação de São Paulo só encontro "anjos caídos", cada qual com seu saquinho plástico cheio de esmalte cor de rosa-flor, branco-paz, vermelho-sangue, amontoados num canto da praça, ao lado do sino dourado da Paz, que paz? Nos olhos deles um misto de carência e desafio, amor e ódio, infância e maturidade, a dicotomia necessária para a sobrevivência nas ruas.


Certamente os anjos não passaram por ali, senão tinham deixado, ao menos, um pouco de paz e as varetas com as bexigas, alegria da garotada. Ou passaram e, condoídos com a situação, foram à busca de soluções para o problema?


Desço a General Carneiro, entro na Vinte e Cinco de Março, vou até a Carlos de Nazaré, volto pela Barão de Duprat, pego a Cantareira. Encontro de tudo, menos anjos. Ou melhor, anjos de carne e osso (?!?), pois de gesso, pano, madeira, espuma, plástico, pedra, vidros, etc. as lojas e os camelôs estão lotados. Anjos estão na moda! A busca foi infrutífera. Já que estou por ali, no Mercado Municipal peço para viagem um dos famosos sanduíches de mortadela, vou deixar o pessoal do escritório de água na boca.


Dias depois, novamente saio do Metrô Sé, o pastor agora canta alto e esganiçadamente, acompanhado por um estridente violão elétrico desafinado (Deus deve ser surdo). O Anchieta continua de costas para o povo da praça, a seus pés dormitam desvalidos com seus parcos bens. Os engraxates na faina habitual, "vai graxa, doutor?", para os quais negaceio com a cabeça.


Ando devagar, procurando anjos, hoje estou decidido a encontrar de onde vêm e/ou para onde vão. Rua Direita, Álvaro Penteado, Tesouro, Quinze de Novembro (anjos não há, mas ciganas e professores de mágica), Quitanda, Praça do Patriarca, São Bento até o Largo. O relógio do Mosteiro soa doze badaladas. Se havia anjos no campanário, foram-se com tanto barulho.


Subo a Boavista, passo pelo Páteo do Colégio, procuro os meninos mas não os vejo, só o "Impostômetro", medidor dos impostos extorquidos dos brasileiros, já mais de cem bilhões de reais desperdiçados nas mãos dos governos (é por isso que há meninos nas ruas, não?), continuo, vejo Anchieta de frente, segura uma cruz, peço que abençoe aqueles meninos, os "índios" de hoje que têm de ser resgatados pela sociedade, e entro na Direita outra vez. Nada de anjos!


Chego na esquina formada pelas ruas Direita e José Bonifácio onde começa a Álvaro Penteado. Ali deveria ter uma praça, mas está ocupada pelo edifício Triângulo, cuja forma faz jus ao nome. Atrás dele, a rua Quintino Bocaiúva. Para onde ir? Parado, olho ao longe pela José Bonifácio e nada de anjos. Na Direita enxergo até a cúpula azul da igreja de Santo Antônio, até a sede da prefeitura. Na Álvaro Penteado vejo até o prédio amarelo na esquina do Tesouro. Vou até a esquina da Quintino Bocaiúva, a vista alcança até o final da rua. E agora? De repente, apesar da balbúrdia daquelas ruas comerciais, sobressai um som delicado, harmonioso, diáfano, celestial, uma missa de Bach. Vozes maviosas, doces instrumentos, cravo, harpa, violinos, flautas, a música vai abafando o barulho das ruas, pessoas param ao meu lado para escutá-la.


Enlevado com a música, elevo meus olhos e deparo, na fachada do prédio velho de onde sai a música, com vários rostos sorridentes e, mais acima, sobre as janelas, seres pairando sobre a cidade: os anjos!


Percebi que minha busca estava errada desde o início, pois procurava seres alados aos rés do chão. Tinha que olhar para cima. O prédio mostra quem dele se utiliza, os rostos e corpos das fachadas são angelicais, com certeza. E as varetas com bolas estão lá, em pedra, enfeitando o peitoril do último andar.


A música continua, a multidão dela desfruta, muitos perguntam quem está tocando, sorrio para meus botões, só eu sei a verdade: os anjos, naturalmente!


JOSÉ FRID


Quer saber mais sobre a Missa de Bach? Veja na terceira mensagem abaixo.

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