O nome da peça desperta minha atenção. Imprecação. Imprecar. No Houaiss, o verbo tem três acepções: pedir a Deus ou às potestades celestes males ou bens; pedir, rogar com insistência; rogar pragas a – praguejar. Veja o Machado de Assis usando o verbo:
"Isto é a vida: não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante."
Machado de Assis, "Teoria do medalhão" in Papéis avulsos, 1882.
A sonoridade me atrai: imprecar. Eu impreco, tu imprecas. Nós imprecamos. Ele imprecou. Imprequemos. Boa a frase: imprequemos os políticos corruptos!!
Entretanto, o sentido da palavra no título da peça é outro. O programa da peça informa que ela é baseada em uma fábula ambientada na China antiga sobre uma camponesa que vai até as muralhas da cidade implorar ao Imperador pelo marido, que está a seu serviço como soldado. Ela encontra dois oficiais, que condicionam a liberdade do soldado ao fato de conseguirem provar se eles são realmente marido e mulher.
A sinopse da peça:
Uma camponesa, Fan Chin-Ting (Renata Zhaneta), vai até as muralhas da cidade reclamar por seu marido (Angelo Brandini) que está a serviço do Imperador. Ela grita pelo Imperador e é atendida por dois oficiais (Hermes Baroli e Heitor Goldflus) que a colocam a prova. Teria seu marido partido com os soldados? Estaria ele morto? Tudo indica que sim. Fan Chin-Ting afirma que saberia identificá-lo por meio de um talismã.
Eis que aparece o Imperador, juntamente com sua comitiva, e concede que os soldados apareçam na muralha, para que ela possa reconhecer o marido. Ela o "reconhece", ficando, no entanto, óbvio que não se trata do mesmo homem. Começa aí um jogo entre os oficiais, a mulher e o suposto marido, no qual reconstituem momentos de "suas" vidas. O jogo é um verdadeiro desafio para ela, que quer sair o mais rápido possível dessa situação aterradora, representando diante dos oficiais da guarda do Imperador, sob a mira de lanças apontadas para sua cabeça.
Finalmente, o teatro macabro é desfeito. Um dos oficiais mostra à mulher o amuleto que seu marido carregava. Ele morreu em combate às tropas inimigas. A comitiva do Imperador se afasta. O homem que até então representava o papel do marido foge para dentro das muralhas. A mulher, mais que nunca, se vê sozinha e, numa fúria selvagem, manifesta seu ódio contra todos: o Imperador, os soldados, os oficiais, o muro.
A encenação
O jogo vital proposto pelo texto de Tankred Dorst é o que interessa. E é apenas isso que a encenação busca concretizar nas relações entre as personagens, entre as personagens e os atores e entre os atores, o público e as personagens. Puro jogo estético. Entram no time o cenário e os figurinos de Sylvia Moreira, a luz de Roberto Lage e a participação crítica e criativa da platéia.
Para a atriz Renata Zhaneta, também idealizadora do projeto, o texto lhe possibilita expressar tudo que sente em relação ao mundo. "É uma fábula encantadora, pois a simplicidade com que a história é contada contrasta com as grandes questões que discute. Desta forma navegamos num jogo delicioso de representação dizendo tudo o que está preso na garganta nesses tempos de busca insana por caminhos mais ensolarados". O ator Angelo Brandini complementa dizendo que a peça é uma grande metáfora do próprio teatro. "As portas fechadas e os muros têm que ser transpostos. É um importante exercício para o ator, mas transcende a isto e passa a ser a metáfora da sociedade, que pode estar em um beco sem saída", explica.
A proposta de encenação de A Grande Imprecação Diante dos Muros da Cidade é um difícil trabalho para o ator. Como Metateatro tem vários níveis de interpretação, exigindo dele o mergulho fundo nos jogos e fantasias, tendo a fábula como pano de fundo. Para Hermes, que interpreta um dos oficiais, o jogo cênico proposto e a metalinguagem são estímulos para o desempenho da interpretação. "O desfecho da história mostra o poder banalizado, opressor, que não protege a população. Nenhum personagem é bonzinho ou revolucionário. Todos são individualistas e querem livrar a própria cara", diz Brandini.
Tankred Dorst – autor
Pouco conhecido no Brasil com pontuais encenações ao longo da história, Tankred Dörst é autor de teatro, escritor, autor de peças radiofônicas, tradutor. Nasceu em 19 de dezembro de 1925, em Oberlind, Turquia. Fundou, em 1953, junto com o compositor Wilhem Killmayer "Das Kleine Spiel", um teatro de marionetes estudantil ao qual contribuiu com seus primeiros textos. Depois abandona seus estudos e se dedica às atividades diversas no âmbito cinematográfico, radiofônico e editorial. No princípio dos anos 70, se une a Úrsula Ehler com quem escreve peças teatrais. Das numerosas obras que estrearam nos teatros alemães e europeus, podemos destacar como exemplo: Merlin ou A Terra Deserta, Parsifal, O Senhor Paul, entre outras. A obra de Dörst tem sido reconhecida com numerosos Prêmios como Max Frisch da Cidade de Zurique (1998), ETA Hoffman (1996) e Georg Büchner (1990). Entre seus textos, destaque para Merlin ou a Terra Deserta (1981), Parsifal (1987), Korbes (1988), Karlos (1990), O Senhor Paul (1994) e Die Lengende Vom Armen Heinrich (1997).
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