segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O Verão de 1968

Ruy Castro

Bastou atravessar o túnel e 1967 ficou para trás, em Botafogo. Quando demos no outro lado, em Copacabana, a alguns segundos da meia-noite, os fogos de Ano Novo já estouravam por 1968. A idéia fora essa mesmo: sair do Solar da Fossa, onde todos morávamos, atravessar o Túnel Novo a pé, em turma, e ir para a praia, cujo réveillon consistia de uns poucos milhares que iam acender velas e jogar flores para Iemanjá; depois, caminhar entre os grupos de devotos na areia, ouvindo os tambores e cantos, e nos sentirmos superiores porque estávamos ali, com um pé na África, e não numa festa de família cheia de pais e tios quadrados.

Na verdade, aquela noite não tinha muita importância. Era só simbólica, tanto quanto a travessia do túnel ― porque, para todos os efeitos, 1968, ou pelo menos seu verão, já começara. E começara quase um mês antes, nos primeiros dias de dezembro, quando a chegada das férias desmobilizara o movimento estudantil e sustara temporariamente as passeatas contra a ditadura militar. A partir dali, e pelos dois ou três meses seguintes, poderíamos exercitar os radicalismos que fariam de 1968 o ano em que seríamos felizes para sempre ― e quase fomos.

Pouco antes, nos últimos dias de aula, só restara uma menina virgem em nossa turma de primeiro ano do curso de ciências sociais na Faculdade Nacional de Filosofia ― e ela, tão doce, frágil e bonita, com seus anéis de cabelo louro e enormes olhos verdes, não se conformava com isso. A pílula já era vendida em qualquer farmácia, a revolução sexual estava em ebulição e a virgindade feminina ― até um ou dois anos antes, uma obrigação ― se tornara um atraso, uma mancha no currículo de qualquer garota que se prezasse. Mas daquele verão não passaria, ela decidiu. Por coincidência, restara também na classe um rapaz bonito, calado, meio sem jeito ― e igualmente virgem. A menina era de uma rica e elegantérrima família carioca, famosa pelo mundanismo de seus membros; o rapaz era da elite paulistana, com um sóbrio sobrenome inglês, cheio de ww e kk. E assim, faute de mieux, os dois resolveram promover um com o outro suas estréias. Um colega emprestou o apartamento ― um quarto-e-sala na rua Senador Vergueiro, no Flamengo, quase sem móveis ― e, numa noite abafada, aqueles dois filhos da alta burguesia brasileira, que teriam direito a lençóis de linho, colchões de penas e núbios para abaná-los, fizeram amor num chão de tacos frouxos, sobre uma esteira de praia, certamente com restos de areia entre os trançados de palha. Isso já era 1968 na veia.

Poucos meses antes, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham se mudado do Solar e ido para São Paulo. Mas, sempre que no Rio, davam um pulinho até lá ― Caetano, de camisa da Marinha, com as fraldas para fora; Gil, gordo, com a cara redonda, de biscoito Aymoré, e chapeuzinho de couro. Iam visitar sua amiga Gal, que todos só chamavam de Gracinha e que continuava morando ali, e conferenciar com o artista gráfico
Rogério Duarte, criador do cartaz de Deus e o diabo na terra do sol. Um dia cheguei da rua e encontrei Rogério no pátio, finalizando um desenho colorido. Era uma mulher nua em meio a um cenário de bananas, serpentes e dragões. Ele me disse que era para a capa de um disco de Caetano. Comentei que mais parecia uma capa do Almanaque Capivarol. Ele riu, concordou e disse que a idéia era essa mesmo ― tinha a ver com algo que estava sendo cozinhado na gravadora Philips, chamado tropicalismo. Rogério convidou-me a seu quarto no Solar e, de um aparelhinho de fita cassete (o primeiro que vi na vida), saíram metais estridentes e dramáticos, com arranjo de Rogério Duprat. De repente, "Sobre a cabeça os aviões/ Sob os meus pés os caminhões/ Aponta contra os chapadões meu nariz..." A impressão foi profunda e, até hoje, para mim, esta é uma das trilhas sonoras daquele verão.

Naquela noite de 31 de dezembro, enquanto virávamos o ano na areia, uma festa de réveillon na casa de um casal grã-fino no Jardim Botânico reuniu cerca de 1000 pessoas e serviu de trailer para tudo que se passaria em 1968. Dela resultaram quase vinte casamentos desfeitos, centenas de novas ligações amorosas e brigas cujas conseqüências ― cortes no rosto, rótulas esmagadas, corações em pedaços ― se prolongariam durante meses para os litigantes. E por que se brigou tanto? Porque, naquela festa, com os dois times pela primeira vez completos em campo, viu-se o choque da Nova Ordem contra a Velha Ordem. Aos primeiros minutos de 1968, ainda era chocante para alguns maridos que suas mulheres tivessem se tornado favoráveis ao casamento aberto ― e resolvido abri-lo ali mesmo, na festa, com homens que nem conheciam. Ou que homens e mulheres, que haviam levado a vida reprimindo seu homossexualismo, decidissem subitamente exercê-lo às claras, declarando-se a pessoas do mesmo sexo. Ou que pregações de violência política, já a favor da luta armada, se sobrepusessem aos conselhos dos moderados que ainda acreditavam na incrível aliança entre os ex-arquiinimigos Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, formalizada pouco antes. O que havia no ar, no verão de 1968, para que, de repente, nada mais fosse como antes?

O que fazia com que, ao atravessar de novo o túnel, para assistir aos ensaios de
Roda viva, que José Celso Martinez Corrêa estava dirigindo no Teatro Princesa Isabel, muitos de nós víssemos com a maior naturalidade a criação das cenas em que a platéia seria agredida pelos atores com postas de fígados sangrentos sendo esfregadas em seus rostos? E por que nossa surpresa quando, com a peça finalmente em cartaz, em janeiro, os espectadores se ofendiam com a agressão e fugiam do teatro espavoridos? Meses depois, quando o espetáculo se mudou para São Paulo, os órgãos de repressão invadiram o teatro e promoveram um massacre de verdade do elenco. Era a revanche da Velha Ordem.

Visto de hoje, parece incrível (e mais ainda para quem não o viveu), mas era como se, no verão de 1968, houvesse uma certeza de que estávamos às portas de um ano como nunca houvera. Naqueles meses, eu era repórter da revista Manchete, mas já tinha
um convite de Paulo Francis para voltar a trabalhar com ele no Correio da Manhã. Meu último trabalho para Manchete foi no comecinho de março ― uma longa e deliciosa entrevista com Tom Jobim no bar Veloso, em Ipanema, enquanto no mesmo momento, a alguns quilômetros dali, o estudante Edson Luiz era morto pela polícia no Calabouço, que era um albergue para rapazes pobres como ele. Por causa desse episódio, a Velha Ordem recuou e a Nova Ordem se impôs, culminando, em junho, com a Passeata dos 100 Mil, o maior ato até então contra a ditadura. Pelo segundo semestre, a ilusão de liberdade nos fez crer que o verão se prolongaria por todo o resto do ano e ― esperávamos ―, ao emendar com o verão seguinte, acordaríamos finalmente na democracia.

Mas, na noite de 13 de dezembro de 1968, a Velha Ordem voltou à cena, e mais feroz do que nunca. Os militares implantaram o
Ato Institucional no. 5, suspenderam as garantias civis, fecharam o Congresso, prenderam um mundo de gente e acabaram com a nossa festa. Por ordens superiores, baixou a noite, fez frio, caiu garoa e, com isso, não deu praia no dia seguinte e nem tivemos o verão de 1969.

No verão de 1968, Ruy Castro tinha 19 anos, era estudante e já jornalista. Morava no Solar da Fossa, um casarão em Botafogo, no Rio, onde também viviam os jovens Paulinho da Viola, Abel Silva, Ítala Nandi, Betty Faria e outros, todos duros, românticos, boêmios e relativamente anônimos. Ocupava toda a área onde hoje fica o shopping Rio Sul, quase na entrada do Túnel Novo.

(Texto originalmente publicado na revista Vogue de janeiro de 2007)

Ruy Castro


Rio de Janeiro, 14/1/2008

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