sábado, 1 de março de 2008

Vida normal - A primeira caminhada!





Dia de expectativa: o retorno à vida normal. Bem, o retorno progressivo à vida normal. Isto é, o retorno progressivo à vida normal com as meias da vovó. A necessidade das meias vai durar apenas dois meses (espero!), logo a progressividade será de sessenta dias. Depois, vida normalíssima! Mas o que é mesmo uma vida normal? Sei que, nesse momento, a vida norma significará ficar livre do regime de duas horas deitado por quinze minutos de caminhada dentro de casa.


- Entrei para o clube dos safenados.



Quando falo isso, logo me perguntam, com olhar misto de horror e misericórdia:

- Quantas pontes?
- Agora está tudo bem?
- Foi infarto?


Calma, gente, ainda não é tempo de pontes (espero que ele não chegue nunca!). Melhor dizer que entrei no clube dos desafenados, assim como café descafeinado. (Se o melhor do café é a cafeína, por que alguém vai querer um café sem cafeína? Só pela água escura? Deve ser igual a cerveja sem álcool, argh!).


Tenho duas meias, ambas tamanho ¾, ou seja, até o joelho: uma creme, aberta nos dedos, que denominei meias da vovó, e outra preta, fechada, parece uma meia social com cano longo, que poderiam ser do vovô. Por que meias da vovó? Nunca a vi sem suas meias elásticas, claras, talvez da cor das que eu comprei. E também porque o fator principal das doenças venosas dos membros inferiores é a hereditariedade, logo culpa da vovó. E da minha mãe, que também tirou e jogou a safena para os cachorros. A minha deveria ter quase um metro, daria boas lingüiças.


Pego a embalagem das meias. Quase metade da frente da caixa é ocupada por uma foto das pernas de quatro pessoas correndo na praia, dois homens de short e duas mulheres, uma de biquíni vermelho e outra de short amarelo. Elas estão sem as meias. Seria a promessa das meias: use-as e depois corra livre pela praia, com pernas bonitas (as das mulheres, é claro). Propaganda enganosa? Tomara que não, tenho maratona para correr em novembro! (Isso seria a vida normal para mim!)


A caixa das meias tem uma bula qual a de remédio: recomendações, precauções, contra-indicações, etc. Tem até responsável técnico, só que um engenheiro no lugar do farmacêutico. Meias, produtos de engenharia! Por isso custaram tão caro!


Mas vamos ao que interessa: a primeira caminhada externa. Calço as meias ainda na cama, conforme as recomendações da vendedora e da embalagem. Antes, vistorio as minhas pernas depiladas (pode? Coisa de boiola, não? Eu fui obrigado pelo médico, mas tem homem que faz por conta própria. Homem?). Os pontos do tornozelo ficaram direito, sem plástica (praia, me aguarde!), os hematomas da operação evoluíram do roxo para um amarelado tipo ouro velho, mostrando que breve sumirão. Aproveitando, informo que o princípio ativo da pomada que passo nos hematomas é obtido por extração do "trato respiratório superior de bovinos", ou seja, estou esfregando nariz de vaca nas pernas!


"Bom dia!", sou eu passando pelo porteiro. Ele devolve o cumprimento e abre as portas do prédio. Não parece surpreso em me ver, será que sentiu falta de mim? Desço as degraus e coloco os pés na calçada. Livre, enfim!!


Espero que esse passeio seja mais interessante do que o de maca no hospital. Quando deitei na maca para ir operar, esperava que o condutor sairia rápido com ela, batendo nas portas para abri-las, as luzes do corredor passando rápido, tudo como a gente vê em filme. Para minha decepção, o cara ia morosamente pelo corredor, parava em cada porta, travava a maca, abria a porta, destravava a maca, passava pela porta, travava a maca, fechava a porta, etc. e tal, num comportamento absolutamente burocrático. Assim, o paciente dorme antes de chegar na sala de cirurgia: apaga de tanto tédio!


O dia está bom, faz sol, em dias assim as chuvas só aparecem à tarde. Para a direita? Esquerda. Hoje, primeiro dia de liberdade, vou até a praça e volto. Três quadras longas. Progressivamente. Caminho devagar, como se fosse a vovó, com cuidado para não tropeçar, escorregar, não torcer o pé, não enfiar o pé na jaca. Evitar tropeçar é o mais difícil, pois tropeço até no ar, esse é o meu normal. Olho para meus pés, parecem mais tortos, para dentro, que o normal. Serão as meias? Ou são coisas da minha combalida mente? As calçadas do meu prédio e do vizinho estão em bom estado, dá para caminhar tranqüilo, tomando cuidado apenas com lembranças deixadas por cachorros e seus porcos donos.


Dou bom dia ao segurança que fica ao sol, de terno e gravata, na saída da garagem do prédio vizinho, bom ver gente ao vivo e não na televisão. A árvore da casa da esquina encheu a calçada com suas flores amareladas com pitadas brancas e frisos rosas na parte de trás, excelentes para um escorregão se pisoteadas, exigindo toda minha atenção para delas desviar, com se fosse um campo minado.


Até aqui tudo bem, as pernas doem um pouco, tanto quanto na caminhada caseira, mas dá para continuar. As meias não apertam tanto. Paro para atravessar a rua e logo as pernas doem. Ficar em pé parado ainda é muito desconfortável. O que acontece com o sistema venoso quando paro, que provoca dor? Se eu fosse médico saberia, mas como não sou, vamos andar!


Atravesso a rua com cuidado, a calçada do outro lado também está em bom estado. Passo em frente a uma casa, do outro lado da rua, cumprimento um senhor gordo e alto que pinta, ou tenta pintar, a grade da garagem. Ela já está descascada, pronta para receber a tinta nova. Nota-se, pela vestimenta e equipamentos, que ele não é muito íntimo do serviço. Veste calça comprida de brim cinza bem passada, camisa pólo nova e abotoada até a gola, boina e tênis pretos limpíssimos. Com certeza foi vestido pela mulher. A lata de tinta e a bandeja com o rolo e o pincel estão sobre uma mesinha de centro forrada com jornal. Ele utiliza duas escadas domésticas de alumínio. A maior serve para alcançar as partes altas da grade, e a baixa, com três degraus, para sentar e pintar as partes mais baixas. Pode alguém pintar sentado e com roupa de missa? Mas ele está tão feliz!


De repente, talvez pelo jeitão do homem, lembro-me da cena do filme "Alguém tem que ceder" na qual o Jack Nicholson, sob efeito da medicação, sai andando pelo hospital de avental, naturalmente com a bunda de fora. Depois, a ex-namorada dele, por vingança, coloca a cena na peça teatral que ela escreveu. Eu fiquei preocupado com isso quando voltei ao quarto depois da operação. A enfermeira obrigou-me a ir ao banheiro diversas vezes para poder me liberar. Lá ia eu meio grogue, sob o efeito da anestesia, a caminho do banheiro, preocupado em andar, evitar as dores e não mostrar o traseiro para ela. Será que consegui coordenar os movimentos e não deixar ela ver minhas partes íntimas?


Sigo viagem e passo pelo restaurante japonês, que até o mês passado era de massas e pizzas, cuja calçada está toda esburacada, forçando meus pés a se adaptarem às irregularidades e, conseqüentemente, provocando ai, aiii, ui, uiiiiii, como é longa essa calçada! Ô prefeitura, cadê a fiscalização? Vamos multar o camarada! Do jeito que está a calçada, não podem passar as criancinhas, os carrinhos de bebê, os velhinhos, as cadeiras de rodas e os recém-desafenados!


Chego numa pracinha no fim da quadra, com calçada mal conservada. Tenho que ir pelo asfalto. Como ela está no cruzamento de três ruas, virou um "macumbódromo", repleta de tigelas de barro, restos de vela, panos e outras coisas que não consigo identificar. Vejo até uma pequena boneca plástica nua, com os cabelos puxados para cima. Seria vodu?


Tento atravessar o cruzamento das três ruas sem parar, evitando as dores. Não vem carro de nenhum lado, mando ver. O calçamento é de paralelepípedo e com caimento para a rua de baixo, tenho que olhar para baixo para não torcer o pé. Quando chego no meio aparecem automóveis pelos três lados! Parece que vou ser caçado! Corro até a calçada mais próxima e escapo no meio de uis e ais. Ao por os pés na calçada paro e a dor piora! Fico dando voltas no mesmo lugar, sem parar, esperando a dor passar. Os mecânicos da oficina devem ter pensado "tão cedo e já está doidão". Superada a fase crítica, recuperado, sigo em frente, e na minha frente uma enorme árvore, com raízes expostas tomando quase toda a calçada. Nos bons tempos daria para pular as raízes, mas agora tenho que desviar pela rua. Desço para a sarjeta, ai, desvio da boca de lobo, ui, contorno a árvore e começo a voltar para a calçada quando sou surpreendido por um carro também entrando na calçada. Dou um salto, aaaaiiiiiii, e consigo evitar a pancada: uma mãe apressada deixando o bebê na creche. Tá perdoada. Depois da corrida e do salto, concluo que a minha atual vida normal ainda não inclui meu esporte predileto.


Enfim a praça! Basta atravessar a rua. Pronto. Foi fácil, pois a praça está cercada por carros parados, o engarrafamento cotidiano (Progresso!). A calçada acabou de ser refeita, está boa para caminhar. As árvores não estão floridas, logo não há flores perigosas no chão. Pego o jornal do bairro na banca de jornais, coloco debaixo do braço, não posso parar para lê-lo, e dou, devagar, uma volta na praça, observando as árvores, os pássaros, as pessoas. Crianças não há na praça, apesar da presença de vários brinquedos de madeira. Nos bancos, homens descansando, alguns até deitados. Numa ponta descubro uma goiabeira cheia de frutos pequenos, muitos pelo chão, alegria dos passarinhos. Se eu estivesse melhor, e não tivesse vergonha, poderia subir na árvore e pegar alguns frutos, como fazia na infância, na casa do meu avô. No meu estado, goiabas só na barraca de frutas, do lado da banca de jornais. Melões, mangas, mamões, melancias e frutas com outras iniciais também.


Depois dessa sessão nostalgia, está na hora de voltar. Atravesso a rua para retornar pela calçada oposta, evitando as mães apressadas e as raízes satânicas, a encruzilhada de paralelepípedos, a pracinha com seus despachos, a calçada do japonês e as flores escorregadias.


No prédio da esquina da praça um caminhão de lixo novo e limpo. Saem da garagem do edifício dois lixeiros empurrando carrinhos de lixo, ou melhor, um lixeiro e, para minha surpresa, uma lixeira! (Não confundir o objeto com a pessoa) Os dois de uniforme limpos e passados, bonés e luvas. Mesmo coletando lixo, ela é vaidosa. A mulher é jovem, bonita, magra, com cabelos presos e brincos de pérola. Um luxo, como diria o Clodovil. Ela não se acanha com o trabalho e pega no pesado, trazendo da garagem vários carrinhos de lixo, que o homem vira para dentro do caminhão. Isso que é igualdade dos sexos!


Logo depois tenho que prestar atenção na calçada em péssimo estado de conservação de várias casas. Depois de várias dores alcanço o paraíso das lajotas vermelhas de outro edifício. Na minha frente caminha uma mulher de calça e camisa pretas, que ao passar por um homem na portaria do prédio extrai dele o elogio "gostosa como sempre". Ela vira a cabeça na direção dele e sorri, mas continua andando. Não sei se sempre, mas hoje está fazendo jus ao elogio. Não consigo ver seu rosto, apenas o seu brinco esquerdo, um grande aro dourado, o que me lembra uma passagem do seriado "Two and a Half men" (que tenho assistido muito no meu repouso forçado), na qual o "filósofo" Charles explica que as mulheres começam a usar brincos grandes para esconder o tamanho das orelhas, que crescem com a idade. Será que ela já está precisando disfarçar as orelhas? Entretanto, na minha velocidade, não vou conseguir alcançá-la para tirar a dúvida.


Esqueço a mulher para me concentrar na próxima calçada, toda remendada. Melhor caminho será seguir pelo remendo de uma canalização, que segue de fora a fora pela calçada. Depois a calçada da escola, um cimentado com pedriscos na superfície, bom para andar. Para minha surpresa, a mulher está parada no ponto de ônibus. Disfarço e a olho: o homem está certo, ela não precisa dos brincos para disfarçar a orelha.


Estou quase no fim da quadra, encontro a casa do elegante pintor. Ele já parou de trabalhar e recolheu seu equipamento. O carro não está na garagem e a grade parece intocada. Nesse ritmo a pintura vai demorar, demorar até contratarem um pintor profissional. Enquanto isso, ele vai se divertindo ....


De volta ao meu prédio, a caminhada foi um sucesso, apesar das dores. Amanhã vou para a direita, explorar o outro lado do bairro. Depois, ao parque. Agora, pernas para cima, que ninguém é de ferro!


Mais um pouco e estarei pronto para o chopinho com os amigos. Alguém se habilita??


José FRID

Um comentário:

Anônimo disse...

Epa??? Você disse chopp? Estarei lá.
Frid, incrível! Lendo esta sua crônica, é como se estivesse caminhando ao seu lado, tal a descrição dos fatos. A visualização do percurso é quase tão real como se eu o tivesse fazendo.
Parabéns!.
Néli.