Um ônibus, uma fechada, a freada brusca, o bombom rola pelo chão do carro, "Seu f.... d. p...!".. Ela não deixa o carro morrer, reduz a marcha e parte antes do motorista revidar. Estava distraída? Não tem opção: ou chega na hora, ou é melhor não chegar. A "Ferrari" voa pela Zona Norte, Rodoanel, Alphaville. Numa curva combinada com lombada e freada, o bombom sai pela janela. Ela nunca saberá qual seria a orientação do oráculo.
Reunião de empresa. Todas se parecem. As pessoas, as empresas e as reuniões. Uma pessoa fala, todos escutam, depois batem palmas. Outra fala, escutam e batem palmas. Escutam e batem palmas: mas prestam atenção ao que foi falado? Cada orador com resultados melhores do que os dos outros. Todos seguros, seguríssimos. Muito bem vestidos. Ternos Armanis? Vestidos Dior? Ninguém se deu mal, não cumpriu as metas. Ninguém fracassa nessa empresa?
Adriana está lá como assistente de Ruth. Traduzindo: seguradora de mala e papéis, auxiliar do PowerPoint. Não falará nada, mas puxará a claque da chefe. Nada do que dizem desperta seu interesse. Olha ao redor e verifica que não é só ela que está entediada. Diria que é um auditório inteiro de entediados, com exceção dos que vão falar – nervosíssimos – e dos diretores, que armaram todo o circo. Já não pensa em Pedro Paulo, seus devaneios matinais foram embora com o bombom. Para não dormir, fixa a atenção nos oradores, mas na forma e não no conteúdo.
Agora é a vez da chefe da filial de Curitiba. Uma nipo-brasileira bonita, elegantíssima, num tubinho preto de algo que parece seda, que deve ter custado o olho da cara. Uma echarpe sobre os ombros arremata o figurino. Sapatos pretos altíssimos, com cara de caríssimos. A filial deve estar dando ótimos resultados.
Ela assume a tribuna com confiança. A voz é firme e clara. Um pouco mandona. Parece ser muito séria. Expõe com clareza os resultados alcançados. O PowerPoint está muito bem feito, sinal que tem boa equipe. Aplausos. Ela agradece séria, seca. Outro palestrante se apresenta. Cumprimentam-se. Ao descer da tribuna, o vestido dela é atravessado pela luz do projetor e deixa transparecer uma calcinha de oncinha.
Adriana não resiste e ri, atraindo a atenção das pessoas à sua volta. Ela pergunta se eles viram aquilo. "Aquilo o quê?", respondem. Só ela viu a calcinha, pois todos já estavam entretidos com o novo orador. "Nada não", diz ela. "Tão séria mas de oncinha na reunião. Quem diria!", pensa. Comentaria com a Ruth? Será que a chefe também usaria uma calcinha diferente na reunião? Tão conservadora. "São as piores!"
A reunião se torna interessante para ela, pois tenta adivinhar a roupa de baixo de cada palestrante, fixa nos detalhes dos sapatos, uma meia furada, o corte dos cabelos, a maquiagem, aquele pinta o cabelo, etc. E as calcinhas, é claro. Aquela representante de Minas certamente está usando uma calcinha enorme, daquelas que a Bridget Jones usou no filme. E a do Rio, uma asa delta, com certeza. Só que está apertando as carnes e marcando uma bóia no vestido. Tudo estilo praiano: bóia e asa delta, sob um vestido verde-piscina.
E os cabelos. Os homens ainda ficam grisalhos, por pouco tempo é claro, mas as mulheres ficam loiras. E de cabelos curtos. Será que ela vai ficar bem louríssima e com os cabelos curtinhos? Só o tempo dirá. Ela balança seus longos cabelos, escorre os dedos pelos fios sedosos, tratados à base de cremes caríssimos. Ocupada com essas sérias considerações, o tempo passa rápido, aplausos finais para o chefão, que agradece a todos pelos resultados obtidos, incluindo no "todos" desde as funções mais simples até os diretores.
Coffee-break. Hora do social e de comer alguma coisa para resistir às próximas reuniões, agora estaduais, em salas menores. Ruth lhe pergunta se gostara da sua exposição. "Foi ótima, você falou bem, segura, clara. Deixou uma boa impressão. Eu vi o presidente balançando a cabeça em sinal de aprovação". A chefe sorri agradecida. Adriana sabe que na empresa precisa agradar os superiores, "jogar o jogo jogado pelos jogadores", seja lá o que isso significar.
Ruth vai conversar com outros chefes iguais a ela, tentar abordar algum diretor. Adriana não precisa disso, joga conversa fora com os colegas que estão ao redor dos biscoitinhos, na rota dos garçons com os sucos. Espera uma oportunidade para falar da calcinha. Já tem a piada esboçada na cabeça. "Quer ser chefe aqui na empresa? Tem que matar uma onça por dia!" "Não seria um leão por dia?", perguntariam. "No Paraná não tem leão, só onça!"
Mais uma rodada de reuniões. Hora do almoço na tenda armada no jardim. Mais interação com os colegas das diversas partes do país. E tome onça. A qualquer momento a dona da calcinha poderá escutar a piada. Será que vai querer saber quem começou com a estória ou irá levar na esportiva?
O almoço acaba e a "Pedrita" não veio tirar satisfações com Adriana. Melhor dizendo, a mulher está mais para "Vilma" do que para "Pedrita". Ou, quem sabe, para avó da "Pedrita". O tipo físico asiático esconde a idade. Ruth a retira de seus devaneios maledicentes convocando-a para a próxima reunião, só com os representantes da Grande São Paulo e ABC. Depois, novamente no auditório, haverá uma última reunião de todos os grupos, onde o presidente exporá as metas futuras, novos produtos, etc.. Nessa última, Adriana tem certeza que irá dormir.
A reunião é rápida. O diretor comunica a promoção da Ruth para a regional. Palmas. Discurso da felizarda e mais palmas. Será que ela está usando oncinha? O diretor retoma a palavra. Quem vai ocupar a vaga da Ruth? Será da empresa ou virá de fora? Os dados são rolados.
Promovida! Sai da reunião super feliz, está no caminho da sua Ferrari Ferrari mesmo. A megera tinha lhe indicado para o seu cargo. Lá mesmo lhe agradeceu muito e jurou amor eterno. Os preteridos a cumprimentaram sem deixar transparecer a frustração, é a regra do jogo. Pede licença e segue para os sanitários, o melhor lugar para se ficar sozinha numa ocasião dessas. (Lembra que em casa também usa esse artifício, chega a tomar três, quatro banhos por dia. Já ouviu dizer de gente que chegou a tomar seis banhos)
Está sufocada. Quer dividir esse momento com alguém, mas alguém próximo. Pensa logo em Pedro Paulo. Seria bom ter ele a seu lado. Ele torce por ela. Mas ligar para ele depois da fuga? Como ele reagiria? Entenderia? Com certeza. Está apaixonado, como provam as mensagens no celular. Poderia dizer que esse seria o motivo da fuga, a promoção. E sua lábia de vendedora é infalível, a promoção que o diga. E afinal foram só dois dias, que mal poderia ter havido?
O banheiro agora está cheio, não é local para falar com seu Pepe. Ligará do jardim. Tem que esperar a grande reunião, aquela em que irá dormir. Procura um acanto romântico, sob um ipê todo florido. Não acha o celular na bolsa. Onde teria deixado? Saiu correndo de casa. Será que ficou lá? Espera que não, pois o cachorro iria comer ao primeiro toque! Tomara que tenha esquecido no carro. Vasculha sua ferrarinha e nada. Acha outro bombom. Não vai comê-lo agora, o chocolate pode manchar seus dentes, o que não pega bem a uma chefa.
A agenda está escancarada, sofreu também as curvas, freadas e arrancadas. Lê a mensagem do dia: "Durante toda a vida é preciso aprender a viver" . É de Sêneca. Vamos aprendendo. Quem ensina? Mas agora é hora do celular. Onde estaria o bendito?
Liga do orelhão para casa, ninguém atende. Liga para seu celular, nada também. Estái ligando para o Pedro Paulo quando Ruth aparece e interrompe: "Ainda bem que a achei. Você precisa conhecer o Ronaldo, o diretor regional. Um gato". "Assanhada assim, está de oncinha", Adriana tem certeza.
Ela reconhece que o homem é um gato, com aqueles brilhantes cabelos grisalhos, com fios milimetricamente esculpidos. O terno, a voz, o aperto de mão. Sem esquecer do cargo. Entende a euforia da chefe. "Se ele pedir, ela dá agora, joga a oncinha nele". O diretor lhe dá os parabéns e se coloca à disposição dela para o que for necessário. Ela agradece e eles blá´, blá, blá, aquelas conversas de empresas naquelas situações.
Ruth está falando com o escritório da Saúde. Diz que pegaram três recados para Adriana. "Parabéns", diz a secretária toda eufórica. "Você mereceu. Todos estão contentes com a sua promoção". Adriana agradece, promete comemorar com a turma e pergunta pelos recados.
"Sua mãe ligou e disse que o celular está no quarto, a salvo do Olavo, mas que não pára de tocar." "Maurício da Gesdot cobrou o projeto". "Um tal de Pedro Paulo, particular, pede que você retorne a ligação, disse que você sabe o número". Ela empalidece. Ele sabe onde trabalha!!! Que fazer?? "Tem certeza que ele falou Pedro Paulo", inquire Adriana nervosa. "Sim, Pedro Paulo". Ruth pergunta o que houve, "alguém morreu?" Adriana se recompõe, agradece à secretária, desliga e diz para Ruth que não houve nada, fazendo um gesto para conversarem depois.
Os três seguem para a reunião final. Adriana só tem cabeça para o recado recebido. Como ele achou o telefone do escritório? Ele poderá aparecer lá amanhã. Seria melhor ela ligar antes para ele? Ou não aparecer no escritório? E se o pessoal der seu endereço residencial? O que fazer?
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