terça-feira, 28 de outubro de 2008

A vitória de Fernando Gabeira

Por PEDRO DORIA

Desde que foi anunciada a vitória de Eduardo Paes, venho recebendo emails meio deprimidos. Há comentários, nos posts do Weblog, que indicam o tamanho da fossa. Mas, daqui de longe, não estou triste, não. Chateado, claro. Triste, de forma alguma. Ontem, ocorreu um fenômeno muito importante no Rio de Janeiro.

Em janeiro deste ano, quando o Weblog lançou a campanha para que Fernando Gabeira se apresentasse como candidato, as perspectivas eram negras. Lideravam as pesquisas de intenções de voto Marcelo Crivella e Wagner Montes. Perante ambos, a vitória de Eduardo Paes não é terrível.

E o fato de que Gabeira chegou tão perto, a 50.000 votos, numa eleição 50.8% vs 49.2, tem muito mais significado do que pode parecer à primeira vista.

Há muitas explicações para sua derrota. O feriadão inventado pelo governador? É claro que ajudou o tamanho das abstenções e, num país um tantinho mais sério, poderia ser matéria de um processo judicial tremendo. Mas a Justiça Eleitoral teria que ter se manifestado e não cumpriu sua obrigação. O comentário de que Lucinha, a vereadora, é 'suburbana' e 'analfabeta política' que o deputado fez ao telefone e que foi entreouvido por dois repórteres? O candidato vacilou e perdeu alguns votos preciosos ali. Indícios de fraude eleitoral? Não há uma eleição no Rio de Janeiro que não tenha alguém, em algum grotão, que chegue com uma mala de dinheiro para que se providencie um número xis de votos. Fraudes sempre existiram e, no tempo da urna eletrônica, são em geral impossíveis de serem traçadas. É um defeito do sistema que o TSE se recusa a reconhecer. A campanha suja, sujíssima, de Eduardo Paes? Tenho certeza de que virou alguns votos preciosos.

Se algumas destas razões não estivesse presentes, Gabeira talvez tivesse sido eleito. Mas a verdade fundamental desta eleição carioca de 2008 não teria mudado: a cidade rachou em duas. É uma cidade polarizada. Um lado não se reconhece na outra.

A cidade partida, enfim, se realizou politicamente.

Meu argumento é que isto é bom. Os principais problemas do Rio têm origem no fisiologismo. Fisiologismo sempre houve. Mas foi estruturado nos tempos em que Antônio de Pádua Chagas Freitas foi governador, entre 1979 e inícios de 83. Leonel Brizola sofisticou o processo. O fisiologismo corrói a estrutura política de um lugar. Para o político fisiológico, o que interessa é a ineficiência do Estado.

Quando o Estado não cumpre seu papel, o político fisiológico transforma a obrigação legal num favor pessoal. E lá se vai uma rua asfaltada, um atendimento médico gratuito, uma cesta básica. O fisiologismo é brutal no Rio. Entre numa favela carioca, e lá está o 'Centro Social Vereador Fulano de Tal'. Os médicos, assistentes sociais ou prestadores de favores quaisquer que trabalham nestes locais são pagos com dinheiro público, da verba de mais de 20 assessores que cada parlamentar tem o direito de ter. Como cinco tocam bem qualquer gabinete, o resto é lucro.

A troca de favores, entre parlamentares, entre Executivo e Legislativo, é essencial para a prática da política. 'Voto em seu projeto em troca de apoio ao meu.' Mas a mecânica que vai corroendo o Estado por dentro faz com que, na prática política, não sobre nada além da troca de favores. O papel fundamental de fazer com que o Estado sirva à sociedade se perde. A política vira um jogo brutal e começa a atrair os piores elementos. Repentinamente, é quem pratica o crime, os chefes de milícias, traficantes, quem viram políticos. A milícia não sobrevive numa favela integrada à cidade.

Quando Gabeira disse que Lucinha era uma analfabeta política, era isto que queria dizer. Ela, como muitos outros vereadores, como quase todos os deputados estaduais, não entendem política de outra forma. Este é o mundo no qual foram criados.

Ontem aconteceu algo de diferente, no Rio de Janeiro. Há oito anos, também houve uma eleição árdua, disputada voto-a-voto. Mas, naquele pleito entre Cesar Maia e Luis Paulo Conde, as armas que decidiram a disputa foram fisiológicas. É o panfleto sujo, a promessa de favores para aliados políticos, uma briga feia, sem ideologia, sem projeto. O resultado do loteamento eleitoral daquela eleição foi o governo que enfrentamos desde 2000. Não será diferente com Eduardo Paes.

Fernando Gabeira provou que um tipo de campanha diferente é capaz de produzir uma quantidade aterradora de votos no Rio. As Zonas Sul, Norte e Oeste votam também numa idéia sem a oferta de uma contrapartida que não o funcionamento correto do Estado. Gabeira representaria, no governo, uma renovação, uma tentativa de alfabetizar politicamente a estrutura administrativa da cidade. Não deu. Mas, no caminho, ele mostrou que, embora mais brutal e violento, o fisiologismo está começando a perder espaço político. Está se auto-destruindo.

Se Eduardo Paes for esperto, ele mesmo promove esta mudança no Rio. Ele se elege um político velho, herdeiro de uma maneira de fazer política velha, mas não precisa terminar assim: é um sujeito inteligente.

Para os cariocas, o que fica é a idéia. É possível ser diferente, imaginar um governo que funcione de forma diferente e talvez até acreditar numa cidade diferente. Esta eleição mostrou, fundamentalmente, que metade da população já o percebeu.

Atualização – A partir das primeiras reações de vocês, me permitam um comentário: Não acho que o voto da Zona Sul + Zona Norte seja 'consciente' e que o da Zona Oeste seja fisiológico. O Mário Marona, que é um jornalista experiente pacas e conhece muito o Rio, tende a endossar esta visão de que a divisão entre ricos e pobres, no Rio, seja geográfica. Não acho que seja. E que os eleitores de Paes e Gabeira se dividiram por esta linha.

É até engraçado: Paes foi aluno do Santo Agostinho e da PUC-Rio. Só anda de camisa bem passada – não existe padrão mais mauricinho de Zona Sul do que este. Irônico, pois é.
Geografia faz parte da história, mas gostaria de ver antes como foi a distribuição dos votos pelas regiões da cidade. Tenho certeza de que Gabeira venceu nas Zonas Sul e Norte e que perdeu na Oeste. Mas minha intuição é de que ele teve entre 35 e 40% dos votos onde perdeu e vice-versa. A pobreza do Rio também está nas Zonas Sul e Norte, assim como há muito dinheiro na Zona Oeste.

O fisiologismo afeta mais o mais pobres? É evidente que sim. São quem têm mais necessidades. Mas é um erro considerar que é apenas alguma forma de elitismo a rejeição ao fisiologismo. Os mais pobres são, também, os mais afetados pelo fisiologismo, pois são eles que mais precisariam de um Estado eficiente. Fisiologismo não é 'a política real'.

Fisiologismo é crime.

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