segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Arrufos Metropolitanos - XVII


O porteiro da noite abre a porta para ele entrar. Ele se concentra para não tropeçar nos degraus. Está cansado e um pouco tonto. Cumprimentam-se, trocam palavras tolas, aquelas apropriadas para a ocasião, duas pessoas que se conhecem apenas de vista. Pedro Paulo pega a correspondência na caixa de correio. Ela está lotada. Gonçalves nunca recolhe as cartas, diz que são apenas contas e propagandas, ninguém mais escreve cartas, agora é só celular e e-mails. E as contas devem ser colocadas em débito automático, ele alega.

Pedro Paulo já tentou convencer o amigo que nem tudo são contas e propagandas, e, mesmo que fossem, as contas devem ser conferidas, algumas não podem ser colocadas em débito automático e existem propagandas úteis. "Divirta-se", ele respondeu na ocasião.

O elevador demora a chegar. Sobe lento, desesperando-o. Entra correndo, se apertando todo, chuta a porta do apartamento para fechá-la, o som da sua batida violenta ecoa no corredor e desperta seu vizinho. Joga a maçaroca de cartas em cima da mesa e voa para o banheiro. Deu tempo. Beber chope é pagar para urinar, conclui. Um diurético, logo remédio, então bar é farmácia. O que estraga são os tira-gostos. Estraga? Quem disse isso bebeu de mais. Os tira-gostos são as alegrias da vida. Dão e não tiram gosto!

Escuta o ressonar de Gonçalves. Sono pesado. Não acordou nem com a batida da porta nem com a descarga do banheiro. Entra no seu quarto, retira os sapatos e calça os chinelos. Volta à sala, sente sede. Pega o monte de cartas, coloca-as debaixo do braço e vai à cozinha andando devagar para elas não caírem. Interruptor, cartas jogadas na mesa. Armário, copo, mesa, geladeira, porta, garrafa d´água, mesa, copo, água, boca, gole, cadeira. Espalha as cartas sobre a mesa. No meio dos envelopes se destaca uma foto brilhante. Ele retira-a do bolo: um postal. São quatro pequenas fotos abaixo do nome da cidade: uma bandeira tremulando na entrada da cidade, um chafariz iluminado, uma peça de concreto branco suportando uma estátua de bronze, e uma vista de uma praia de areia escura. Ele vira o postal e reconhece a letra de Adriana em tinta verde escura:

"Amor
Mal cheguei já estou morrendo de saudades. Passei toda a viagem pensando em você, em nós. Pena você não ter podido vir comigo. Espero que o postal chegue logo, para você se lembrar de mim e se comportar no feriado. Volto logo!
Beijos mil da sua eterna
Pimentinha"

Do lado da assinatura um pequeno coração. Coração verde. Ele sorri. Pimentinha. Apesar de estar escrita em verde, ele sabe que a pimenta é vermelhíssima, ardida. A vida está mesmo sem graça sem ela ao seu lado. Ele olha o carimbo do correio, é de segunda da semana passada. Realmente ela estava com saudades. Chegou no sábado e mandou postal na segunda. E teve de comprá-lo, escrever, levar até o correio. Reconhece o esforço, tem que querer enviar o cartão. Fica confuso: como pode, alguém mandar um postal desses e depois sumir? Não entende, fica confuso: chope ou emoção?

Solta o postal. Bebe água devagar, pensativo, olhar perdido em direção à geladeira. Observa cada ima preso na porta. Coleção do Gonçalves. Suas viagens. Não tem mais onde colocar. Será que Adriana trará algum de Avaré? Com a bandeira da cidade? Ou do chafariz que lembra uma fruteira, três pratos empilhados?

Ele pega novamente o cartão postal e relê as garatujas verdes com cuidado. "Sua eterna ...". Deve existir uma boa explicação para a sua eterna pimentinha sumir. Ou ela seria "eterna enquanto dure" como poetizava Vinícius? Não! Ele rapidamente afasta essa idéia do cérebro. Repara no "comportar" sublinhado. Ela estava preocupada com o fato dele passar o feriado sozinho com o irmão lá em Santos. Pedro Paulo sorri. Ela tem razão em ficar preocupada, conhece seu irmão. E quem gosta, cuida. Carla, Carla. Seu sumiço está deixando a porta aberta para a outra. Muito entrona. Ele cheira a manga da camisa e sente o perfume da santista. Mas ela não significa nada para ele, tem certeza. É apenas "ximbica para passar o tempo", como Vadinho falava para Dona Flor.

Agora o cheiro de Carla na camisa o incomoda. Tem um cheiro de cigarro também, não é cigarro, é o charuto do pai da criança. Um cheiro de cerveja velha, a amiga dela que derrubou num brinde. Ele sorri ao lembrar o desespero que acometeu um colega do pai fresco ao cair chope na sua camisa azul. Desespero em não saber explicar para a mulher, quando chegasse em casa, que mancha e cheiro eram aqueles. A santa megera não sabia que o fulano estava num bar da Paulista.

Ele comentara com Carla que isso era uma vergonha, o homem casado tinha o direito de beber um chope com os amigos, de vez em quando. Ela concordara com um sorriso maroto, que significara que ela não queria polemizar no momento, mas estava mesmo do lado da mulher do cara.

Os cheiros o incomodam. Ele retira a camisa e a joga no chão. Os cheiros continuam fortes. Despe a calça e as meias. Paga as roupas e as deposita sobre a máquina de lavar roupa, na pequena área de serviço do apartamento. Um leve rumor de trânsito chega da avenida. Olha pela janela, todas as luzes apagadas, o prédio dorme. Só de cuecas e chinelos volta para a cozinha. Vê seu reflexo no vidro da janela: está quase como Vadinho aparecia para Dona Flor, depois de morto.

Senta. A cadeira está gelada. Pega uns envelopes e senta em cima deles. Pena que Gonçalves não está ali para concordar que eles podem ser úteis, como agora. Revira o postal. Onde será que Adriana conseguiu aquela tinta verde? Parece tinteiro, mas pode ser uma daquelas canetas japonesas. Será que ela escolheu aquela tinta ou seria a única disponível no momento? Caso ela a tenha escolhido, a cor verde deve ter algum significado especial. Ele pensa no assunto por alguns instantes, mas não consegue achar nenhum significado para o verde. "Vai ver que era a caneta que ela tinha à mão, do avô, do correios."

Olha novamente a frente do postal. Percebe que há um nome abaixo de cada imagem, em letras minúsculas. Ele tenta imaginar Adriana em cada um daqueles quatro lugares. Na rotatória da bandeira certamente ela não foi. Um pouquinho de grama entre ruas não teria o menor interesse. Talvez tenha tirado foto no chafariz. Será que ele está funcionando? Nessas cidades pequenas é comum um prefeito abandonar a obra do outro. A foto pode ter sido tirada na inauguração, quando havia água e iluminação. Repara que não tem bancos na praça. Muitas árvores. Será que o pessoal paquera andando em volta do chafariz?

Na praia de terra escura espera que ela não tenha ido. O tempo em Santos esteve bom naquela semana. Será que lá em Avaré fez sol? A imagem de Adriana de biquíni na praia, cercada de garanhões, não lhe faz bem. Uns engraçadinhos querendo passar protetor solar. Um deles convidando-a para conhecer uma ilha deserta. Outro chamando para lhe ensinar a andar de jet-ski. Não, a sua eterna pimentinha não foi naquela praia com certeza. Praia de rio? Ela não gosta. Detesta. Só se foi com a família, avó, tias, primas, nada de garanhões gulosos atrás de carne nova. Por que está pensando essa bobagem toda que lhe está fazendo mal?

Sob a última foto está escrito: Monumento ao Soldado. Parece um "cê" gigante, de concreto branco, com um soldado de bronze no topo. Seria homenagem aos soldados em geral ou a algum em especial? Ou aos soldados que lutaram na segunda guerra, os pracinhas? Repara que a foto lembra a homenagem ao Juscelino lá em Brasília. A estátua também está no alto, envolta numa estrutura branca de concreto, que dizem emular o símbolo comunista da foice e o martelo. Coisas do Niemayer. Comunista milionário, morando na beira-mar do Rio. Contradições que ninguém aponta. Culpado pelo Memorial da América Latina.

Lembra da visita que fez com a Adriana ao Memorial. De Metrô, é claro. Um calorão danado, aquela enorme área cimentada, sem sombra nenhuma, o calor irradiando do chão, refletindo das coberturas brancas, um forno. Interessante só a mão ensangüentada representando a América Latina. Puro desperdício de dinheiro público. Mais dinheiro no bolso do comunista e seus asseclas.

Teria alguma razão para Adriana mandar exatamente aquele cartão postal? Ela queria dizer alguma coisa com aquelas quatro fotos? Ou seria o único postal da cidade? Ele pensa que está procurando chifre em cabeça de cavalo. Chifre? Coça a cabeça. Que chifre? O sumiço dela está deixando-o tonto, conclui.

Ele levanta, alguns envelopes grudaram nas nádegas, ele anda mesmo assim e eles caem no chão da cozinha. Abre a porta da geladeira, precisa comer algo para segurar o chope no lugar. Estava com fome quando encontrou Carla. Os chopes chegaram antes dos tira-gostos, que agora bóiam no mar alcoólico. Encontra a ricota da dieta do amigo, uma ponta de salaminho e um resto de pão de forma.

Enquanto prepara o sanduíche para colocar no "George Foreman", também da dieta do Gonçalves, ele lembra de uma carta que recebeu de Adriana, tempos atrás, que lhe deu o maior susto.

Logo que abriu a caixa do correio, viu a cartinha rosa e sentiu o perfume dela. Ficou tão alegre que abriu a carta ali mesmo, no hall do prédio. Ela continha uma folha de papel branco com desenhos negros de morcegos e aranhas. Estava escrito assim, em tinta preta e letras desenhadas:

Não te amo mais.
Estarei mentindo se disser que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza de que
Nada foi em vão.
Sei dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer nunca que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade:
É tarde demais...

Ele ficou estarrecido. Sua pressão caiu, ficou lívido, tonto, a folha caiu no chão e ele se recostou na parede. Uma vizinha, vendo a cena, se aproximou e lhe perguntou se ele estava passando mal, se precisava de ajuda. Ele se recompôs, agradeceu e disse que não era nada, a carta ..... Ela se abaixou, pegou a folha, devolveu-lhe e perguntou se alguém tinha morrido. Agradeceu, respondeu que sim, mas tudo bem, pegou o resto da correspondência e pegou o elevador. Como explicar para a vizinha a desfeita que a namorada tinha feito? Entrou em casa desarvorado, jogou-se no sofá com a correspondência. Pegou a folha outra vez e releu o texto com o coração apertado. "Filha da ......" Não concluiu a frase. No fim da página havia uma seta indicando para virar a folha, e no verso as seguintes frases:

Agora leia de baixo para cima.
Te amo muito
Adri.
ps: o texto parece que é da Clarisse Lispector

Ele sorriu. Essa era a sua pimentinha. Como imaginou que ela queria romper com ele? Os sanduíches ficam prontos. O cheiro do queijo derretido e da gordura do salaminho empesteiam a cozinha. Olha a garrafa em cima da mesa. Acompanhar aquelas coisas tão cheirosas com água? Nem pensar! Gonçalves podia reclamar, mas ele vai tomar uma das suas latas de "Pepsi Twist Light".

Ajeita novas cartas na cadeira. Recorda que naquela ocasião desejou também enviar uma carta jocosa para ela, mas, como não tinha seu endereço, pegou o celular e ficaram "horas" namorando. De repente, entre uma mordida e outra, se dá conta que agora pode enviar uma carta, pois tem o endereço do escritório. Ou melhor, pela manhã terá o bendito endereço. "É isso, uma carta!"

Animado, come os dois sanduíches, bebe o refrigerante e arrota alto, feliz. "Uma carta!" Resolve tomar banho antes de escrever a carta. Quer estar limpo por dentro e por fora, Adriana merece. Passa pelo corredor, fecha a porta do quarto do amigo e entra no banheiro. Abre o chuveiro, a água escalpelante, lava a cueca, sabonete, shampú, deixa-se banhar demoradamente, procura na nuvem do vapor as palavras que irá enviar para ela.

Com o texto imaginado, e também imaginadas as reações dela àquelas palavras, se enxuga e coloca o pijama. Vê o pijama dela no seu armário. Pega-o, sente o cheiro dela e o enrola no pescoço. "Será uma bela fonte de inspiração!"

Onde escrever? Na cozinha? Na sala? No quarto? Melhor, está cansado. Ele pega na escrivaninha papel, caneta e uma revista grossa para lhe dar apoio. Arruma os travesseiros, recosta-se neles e se prepara.

"Adriana
Tenho sofrido muito com a sua ausência. Você é tudo para mim!! Tudo!! Tudo!! Tudinho e mais ainda!!"

Ele pára e relê aquelas poucas palavras. Será que não está muito meloso? Relê novamente e conclui que o texto realmente está muito grudento. "Tá bom, e o quê escrever então?", pensa em voz alta.

Ele reconhece que ela não é tudo para ele, existem outras coisas igualmente importantes para ele, mas ela é muito para ele. Escreveria "você é muito para mim"? Muito o quê? Ele amassa a folha de papel e joga longe. Depois de muito pensar, recomeça a escrever sua carta:

" Volta!! Não sou ninguém sem você! Preciso tanto!"

Pára. "Parece letra de música". Amassa a folha e a lança para fazer companhia à outra. "Preciso pensar mais, me concentrar, buscar inspiração". Ele cheira o pijama de Adriana. Fecha os olhos. Pensa nos acontecidos da semana .........

Nenhum comentário: