- Quem é marginal?
A pergunta de Adriana surpreende os três na sala. Adriana está de roupão e chinelinho de flanela, anda sem fazer barulho. Eles se entreolham, apreensivos. A irmã fica com vontade de contar a verdade, mas teme a reação dos pais e da própria Adriana.
Olavo late no quintal. A mãe agradece baixinho, "bendito cachorro", e aproveita a deixa:
- Um cara que passou e jogou comida com veneno para o Olavo!
- Um marginal! Se eu pego quem fez isso, obrigo a comer tudinho, completa o pai.
A irmã só arregala os olhos. Adriana não acredita muito na estória do envenenador, tem certeza que estão lhe escondendo alguma coisa, porém não se importa. Não conhece ninguém que possa ser considerado marginal e tem mais o que pensar. Sem dizer nada, segue para o quintal para pegar a sua toalha. Faz uma gracinha para o cachorro e na volta avisa que vai tomar banho de banheira para relaxar.
- Deixa a porta aberta que vou escovar os dentes.
- Não demore!
Ela segue pelo corredor arrastando os chinelos. Os três fingem assistir televisão enquanto esperam ela sumir de vista.
- No sábado a gente tira isso tudo a limpo.
- Continuo achando que vocês dois estão loucos. Tchau. Vou escovar os dentes e dormir antes que ela interdite o banheiro.
Adriana espera a irmã sair e tranca a porta do banheiro. Liga a água quente, coloca sais e espera a banheira encher de espuma. Ela se despe e deixa-se afundar na água quente. O corpo agradece. A mente rodopia, gira rápida. Fica um pouco tonta. Chope, calor ou preocupação? Respira fundo, a umidade do banheiro lhe faz bem. Prende a respiração e submerge. Retém o corpo sob a água. Concentra-se no que está fazendo. A mente vai se desacelerando, preocupada com a respiração. Com a ausência de respiração. Escuta o bater do coração. Uns sons metálicos ao longe. Sobe devagar. Respira lentamente.
Tão boa essa água quente. Boa não, ótima! E os sais vão lhe fazer muito bem. Está realmente precisando relaxar, descansar, pôr as idéias em ordem. Tantas surpresas. Que semaninha!! E ainda nem chegou na metade. Será que sobreviverá até o fim? Até o fim de semana? Fim de semana é bom. Amanhã ainda tem muito trabalho na matriz. Que saco. Cursos, palestras. Tanta baboseira. A missão da empresa. No fundo todos sabem que o que importa mesmo é o resultado, o lucro. Depois tem a quinta. Que será que irá fazer? Está na mão deles. A sexta também. O sábado é dela, com certeza. Vai se cuidar. Cabelo, pé, mão, depilação. Quem sabe jogar um vermelho nos cabelos? Umas roupinhas novas? Sim, a promoção paga, dá para gastar por conta!
Fim de semana em casa dessa vez. Saudade da cidade. Dois fins de semana fora matam qualquer um. Não pode reclamar, a semana em Avaré foi boa, ótima! Só festa. Gente nova, gente velha. Festa. Muita bebida, muita comida, pouco sono. Deve ter engordado um pouco. Ou não, dormiu pouco, andou muito, dançou muito, nadou, beijou muito também. Só para perder calorias. Ô povo beijoqueiro, sô!
O anel. De repente se lembra da caixinha na mão de Pedro Paulo, de pé na rodoviária. Será que existiria mesmo um anel de noivado? Tinha visto apenas a caixinha de veludo preto na mão dele. E o seu rosto apalermado. Enxergara de longe e se apavorara. E quem disse que era para ela? E que era de noivado? Poderia ser apenas um presente. Ela não merecia um presente? Sim, com certeza. Quem sabe um relógio? Não, a caixinha é pequena. Um brinco, um broche, talvez. Pensa. Revê a cena. Uma, duas, três vezes.
Sentimentos contraditórios. Alegria. Ternura. Surpresa. Raiva. Amor. Culpa. Amor. Culpa. Raiva.
Alegria em chegar a São Paulo. Ternura em vê-lo esperando-a. Surpresa pelo anel. Raiva em ter que fugir do compromisso. Amor pelo amor. Culpa por Avaré. Meu amado. Culpa em fugir. Raiva por ter que ir embora ....
Ele estava tão bonitinho. Todo arrumado com as roupas que escolhera para ele. Tem que reconhecer: ele vestira-se para ela. Cabelo penteado, barba feita. Certamente isso tudo tinha algum significado. As roupas, a caixinha e o rosto embevecido tinham um significado explicito para os dois. E ela fugira. "Noiva em fuga", qual o filme. Julia Roberts também fugira de uma situação dessas. Só que chagava até ao altar. Fugira antes, na rodoviária. Sem vestido branco, sem cerimônia religiosa, sem testemunhas. Melhor assim.
Já viu a Julia Roberts numa banheira de espuma como a dela. Outro filme, "Uma Linda Mulher". O mesmo Richard Gere. Seu pai afirma que a Luma de Oliveira é que é uma linda mulher, dá de dez na Julia Roberts. Briga certa com a mãe. Ele justifica que precisa ter assunto para conversar com os clientes da loja. Corpo por corpo, concorda com o pai, também prefere a Luma. Mas a Julia é outra coisa. Poderosa. Lembra da cena no filme "Erin Brockovich", ela enrolando o homem do arquivo só com os peitos. A Luma também tem esse poder, mas a outra está nas telas. A Luma e sua gargantilha com o nome do dono. A Julia não usaria. Ela também não usaria. Ousaria? Depende. Gosta de gargantilha, Pedro Paulo também. Se ele pedisse, usaria?
Pedro Paulo não é assim um Richard Gere. É melhor, mais novo e é dela. Põe os noivos do filme da outra no chinelo. E por que saiu correndo? Pelo mesmo motivo que a noiva sai correndo no filme. Medo. Culpa. Compromisso. Responsabilidade. No filme não está bem claro qual é o motivo. E para ela também não está.
Afunda mais uma vez a cabeça na água, repete o exercício de concentração. Não é assim uma Julia Roberts, uma Luma, mas deixa muito homem de boca aberta quando passa. Um bom sutiã faz efeito. Um escarpim de salto alto é matador. Às vezes, um movimento de quadril é suficiente. Tá dominado. Nem precisa da cruzada de pernas da Sharon Stones. Não precisa tanto, homem se vende por muito pouco.
A água está esfriando. Sua cabeça não. Liga o aquecedor da banheira, coloca a água para circular. Física pura. Frio desce, calor sobe. O anel. O bendito anel. Se é que é um anel e não um brinco. Onde estará agora? Em cima da escrivaninha? Dentro do armário? No cofre? Ele deve ter escondido no armário, lá no fundo, para ninguém ver. Se conhece bem Pedro Paulo como pensa, ele não deve ter mostrado para ninguém. Ainda mais com sua fuga. Na escrivaninha Gonçalves e a faxineira iriam ver. No cofre o amigo veria. Pode ser até que estivesse no cofre, mas agora não está. Ele teria que explicar para o amigo por que ela não ficou com o anel. E ele não saberia dizer. Ela não sabe explicar também.
Qual a ameaça do anel? Noivado? Quem disse que é de noivado? Nunca conversaram sobre isso. Ou melhor, ele disse uma vez que tinha vergonha de ficar noivo, o melhor era casar logo ou juntar os trapinhos. Se tem vergonha, na caixinha não tem anel! Por que não pensou na hora? Ele já a convidou para morar no apartamento do Tatuapé. Mudarem para dentro das vidas um do outro. E o Gonçalves? Poria para correr. E as coisas do amigo? Jogaria pela janela tudo que ela não quisesse. Beijos e abraços, enrolada no lençol, percorrem o apartamento:
- Esse sofá fora, as poltronas fora, a mesa, as cadeiras, o tapete, as cortinas, aquele quadro, esse outro ....
- Assim não dá, você está jogando tudo fora!!
- Não pedi para morar aqui, você é que quer. A tevê ...
- A televisão?
- Pode ficar. A estante, o pôster....
- O pôster não!!
- Viu como não posso mudar para aqui? Ou eu ou o pôster!
- Vamos conversar melhor. Que tem o coitado do pôster? Trouxe de Las Vegas!
- Mais um motivo para ele cair fora. Terra da devassidão!
- Pensei em você o tempo todo. Lembra das ligações que fiz para você? Acabou com o rico dinheirinho que ganhei ...
- Joga na cara, joga!!
- Não é isso! Foi prova do meu imenso amor por você! Poderia ter investido a grana numas meninas ....
- Nem ouse!! Tá bom, o pôster fica, mas no outro quarto .....
Ele a abraçou, beijou, o lençol caiu e não falaram mais sobre o assunto. Foram ficando, ele lá, ela aqui. Agora o anel. A caixinha do anel. Que pode ser do brinco, dos brincos, dos dois brincos. Ou um broche. Quem usa broche? Brocha!
Que banheira gostosa! Na casa dele não tem. Nem deu tempo para negociar a instalação de uma. Aqui só faltam pétalas de rosas, como naquele filme "Beleza Americana". Recorda-se de um banho com ele. Pousada em Cunha. Banheira com vista para as montanhas. Reclamou que faltaram as rosas como no filme. Ele pediu para ela lembrar que a menina não tomava banho com ninguém, que tinha sido estuprada e morta. Mas a cena das rosas caindo sobre o corpo dela era inesquecível.
Ele se levantou e disse que por ela faria tudo, iria até ao centro da cidade comprar as rosas. Ela viu aquele homem, seu homem, ali nu, molhado, ereto, frio ou prazer, deixe disso, volte para a banheira, vamos aproveitar. Ele voltou. Foi ótimo. Que rosas, que nada. Pela janela, ao longe, até viram umas florzinhas que bem podiam ser rosas. As rosas dela. Ganhou naquela viagem um suporte de madeira com dois ganchos encimados por rosas. A rosa rosa é dela, a rosa vermelha é dele. Está na casa dele.
Com saudades. Cadê ele? O anel. Culpa do anel. Por que fugiu? Ai, por que? Poderia ter ido para a casa dele, posto a roupa no gancho de rosas. Sem problemas, os pais não sabiam quando ela chegaria de Avaré. Por que não foi? Avaré. Estava cansada. Virara a noite na festa. Mais a viagem de ônibus. Mais a festa de sexta. A represa na sábado. Rodrigo, Gustavo, Paulo, Leonardo ...
Submerge novamente. Segura a respiração. O coração palpita. Dispara. Rodrigo, Gustavo, Paulo, Leonardo. Escuta as vozes metálicas dos quatro. Visualiza os rostos. Cada um mais lindo que o outro. Os corpos. Perde o fôlego. Emerge. Passa a mão nos cabelos para arrumá-los e escorrer a água. Tira a água dos olhos. Pega a toalha e os enxuga. Olhos agora bem abertos.
Ali está o problema. Não é o anel, brinco, broche, sabe-se lá o que. Não importa. São eles. "Eu mostro a boca marcada, ainda molhada pelos beijos seus ...". Deles! Deles! Pudor? Lavou, tá limpo?
Sai da banheira, enrola-se na toalha, senta na borda, retira a tampa do ralo, a água começa a baixar, ela sente a força do redemoinho entre seus dedos, que são levemente sugados. A vida está assim, sendo levada por um redemoinho ...... Pedro Paulo, anel, os quatro beijoqueiros pegadores, a promoção, Ruth, o diretor, os recados do Pedro Paulo ..... tem que ligar para ele!! Agora!!
José FRID
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