terça-feira, 25 de novembro de 2008

Arrufos Metropolitanos - XX


- Princesa, é hora de acordar!

A claridade fere seus olhos e ela desperta. Xinga a irmã e pergunta que horas são.

- Hora de levantar, querida. Não vai trabalhar?
- Vou. Um saco. Vou ter que ir para Alphaville outra vez. Que horas são?
- Foi dormir tarde?
- Sim. Demorei no banho. As horas!!
- Abra os olhos e veja você mesma. Está de ressaca?
- Um pouquinho. Podia ser pior. O banho de banheira fez bem para mim.
- Saiu com Pedro Paulo?
- Não. Foi com o pessoal do escritório. Nem te conto. A Ruth, sabe, a minha chefe, pegou o diretor!
- E?
- Sabia que você não ia dar valor a essa valiosa informação! Tem gente da empresa que se mataria para saber disso!
- Arranjou alguém?
- Eu não!!!
- Por que não?
- Sou fiel.
- Muito! Avaré já são águas passadas?
- O que tem Avaré?
- A ressaca está pior do que eu pensava. Esqueceu o que me contou? Os meninos ...
- Aquilo é tudo bobagem, esquece.
- Bobagem?
- Para passar o tempo. Aqui não. Só o Pepê ....
- Quer dizer que lá pode tudo, liberou geral, lavou tá limpo?
- Tudo o quê?
- Banhos nus na represa, amassos depois dos bailes, as caminhadas no horto ...
- Ah, isso aconteceu há tanto tempo, que já esqueci tudo!
- Tanto tempo? Semana passada! Contou para ele?
- Não, ainda não consegui falar com ele.
- Ele vem aqui no sábado.
- Quem?
- Seu namorado, ora!
- Pedro Paulo?
- E você tem outro?
- Claro que não.
- Foi mamãe que convidou.
- Como? Ele esteve aqui em casa?
- Você não sabia?

Aquela notícia inesperada a desperta de vez. Ela enfim abre os olhos, espreguiça-se e senta na cama.

- Aqui em casa?
- É sábado. Mamãe chamou para um churrasco.
- Ele esteve aqui em casa??
- Não, ela falou com ele pelo seu celular. Você esqueceu aqui.
- E ela atendeu?
- Falou que ele não parava de tocar ...
- Jogava no lixo, mas não atendia!!
- O cachorro ...
- Matava aquele pulguento, mas não atendia o telefone de outra pessoa!
- Falei para ela ....
- Metida!! Celular é coisa estritamente pessoal!!
- Você não sabia que ela tinha atendido?
- Não! Cheguei naquela hora que você viu, não deu tempo para a gente conversar!
- Mas ela atendeu e falou com ele. Algum problema?
- Sim!! Não, tudo bem, mas convidar para vir em casa?
- Qual o problema? Ele não pode ver a gente? Onde moramos?
- Poder pode, mas sou eu que tenho de convidar!
- A mãe acha que você está escondendo alguma coisa.
- Que coisa?
- Sei lá. Ontem os dois estavam discutindo sobre o Pedro Paulo.
- Eles nem conhecem ...
- Por isso mesmo!
- Ai, meu Deus! Eu com tanta coisa para me preocupar e aparece mais essa!
- Calma! O que você vai fazer? Brigar com mamãe?
- Não. Não quero brigar com ninguém. Agora sou da paz. Vou desconvidar simplesmente.
- Ela vai ligar para ele na sexta-feira.
- Ela tem o telefone dele?
- Guardou quando atendeu.
- Essa mulher é fogo! Se metendo onde não é chamada!
- Foi o que falei para ela, mas não adiantou.
- E papai, o que acha?
- Tá com ela e não abre. Acha que ele é bandido.
- Bandido? Esse pessoal está pirado!
- Também acho.
- Quando eles falaram sobre esse assunto?
- Ontem. Você não viu nós três conversando? Era sobre ele. O marginal era ele ...
- Cada uma! Não têm nada melhor para fazer que cuidar da vida dos outros?
- Mas parte da culpa é sua. Por que você ainda não trouxe o tal do Pedro Paulo aqui em casa?
- Por nada. Falta de oportunidade, mais nada. Para mamãe ficar buzinando no ouvido dele? Perco o namorado!
- Eles não pensam assim.
- Não tem problema. Vou marcar outro programa com ele e pronto. Quero ver que churrasco vai sair. Vai sobrar carne!
- Você devia aproveitar a chance e apresentar o belezura para a família ...
- Tá louca? Ela é capaz de convidar toda a família para ver a cara dele!! Falar em casamento!! E o churrasco do papai é terrível!! Além da cerveja quente e cheia de espuma que ele insiste em servir!
- Vamos ver. Cada qual com seus problemas. Vou cuidar das minhas coisas. O que você está fazendo em Alphaville?
- Palestras, cursos, aquelas bobagens de empresa. Hoje vai ter até almoço.
- Boa sorte. Na volta a gente conversa.
- Sim. Brigadão pelas informações sobre as manobras da mamãe. Fico devendo.
- Vou cobrar caro, pode deixar. Fale com ela, pode ter atendido outras pessoas ...
- Bem capaz!

Odete sai. Adriana a escuta falar com a mãe. A voz alta da mãe provoca-lhe dor de cabeça. Está sem coragem de enfrentar a fera agora pela manhã. Vai acabar com o seu dia. Dormiu tão gostoso, depois do banho de banheira, não merece discussão logo cedo. Com certeza vai querer falar de Pedro Paulo, contar o que conversaram, o convite para o churrasco, vai sair briga. Se a mãe soubesse que ela não fala com o namorado desde a outra semana .... ou que ele queria lhe dar um anel de noivado .... mudaria alguma coisa?

Na verdade, tem curiosidade sobre o papo entre os dois. Que será que Pedro Paulo contou? Ele é tão tímido com estranhos. E a mãe agressiva, entrona, faladeira, perguntadeira. Será que ele contou que está atrás dela para dar um anel de noivado? Mamãe ficaria emocionada! Não, não deve ter contado nada! Será que ela perguntou sobre seu trabalho, família? Com certeza! Pode ser que ele não tenha falado as palavras certas, se estão achando que ele é marginal. Mas como convidam alguém que é bandido para um churrasco? Alguma coisa está errada! Tem boi na linha. Que será que ele disse? Brigou com mamãe? Mas e o churrasco? Deve ter cativado a velha com seu jeitinho de bom moço. Será que Odete entendeu direito a conversa? Bandido não seria outra pessoa? O tal marginal que deu veneno para o Olavo? Pedro Paulo marginal? É o fim! Só quem não conhece pode pensar essas barbaridades! O negócio é falar diretamente com Pedro Paulo e tirar a dúvida.

Ela se recorda que ontem saiu do banheiro com o firme propósito de ligar para ele. Firme propósito que soçobrou à menor dificuldade: achar o celular no escuro. Poderia acender a luz, a irmã não acordaria, dorme como pedra. Mas não, resolveu ligar da sala, acabou na cozinha atrás de comida, ligou a tevê, Jô Soares, deu sono, foi dormir e esqueceu do homem. E o celular ali, na cabeceira, do lado do rádio-relógio da irmã. Não achou porque estava desligado. Por sinal, oito e vinte e três. Hora de ir. Como sair sem trombar com a mãe? Com a tromba da mãe? Trombar com a tromba. Ela sorri para si mesma. Quanta bobagem. Mente desocupada dá nisso.

Ela liga para Pedro Paulo. Ninguém atende. Insiste. Caixa Postal. Não deixa recado. Onde anda esse garoto? Não telefona mais. Não atende suas ligações. Que será que falou com mamãe? Melhor dormir mais um pouco e ir só para o almoço. Depois dá uma desculpa qualquer para a empresa. São tantas pessoas que nem vão reparar na sua ausência. Depois do que viu ontem, o diretor não vai encher o saco. Ruth está na Saúde. Boa idéia dormir mais um pouco. A ressaca acaba. E até lá a mãe já foi trabalhar, comprar, passear, vadiar, sumiu!
Não, melhor enfrentar a fera, a sargentona. Ela é capaz de vir aqui no quarto perturbar, puxar conversa, contar toda a história do telefonema. Melhor se arrumar, ficar pronta e sair correndo, dizer que vai tomar café da manhã na empresa, não dar tempo para ela reagir.

- Tchau, mãe! Estou atrasada!
- Não vai tomar café?
- Vou tomar lá! Tchau!
- Tá levando o celular?
- Sim, mas a bateria está fraca. Tenho reuniões o dia todo. É capaz dele estar desligado. Deixe recado, que no intervalo eu ligo. Beijo!

Novamente a "ferrarinha" dispara pelas ruas da Zona Norte rumo a Alphaville. Hoje vai pelas Marginais, depois pega a Castelo. Direto ao ponto. Antes, uma padaria charmosa, senão vai desmaiar de fome no engarrafamento cotidiano. Pede um expresso e um pão de queijo. Um não, dois. Tem que enrolar o estômago até o almoço.

Pega o celular e a agenda na bolsa. Liga para ele. Nada. Outra vez. Nada de novo. Mais uma, caixa postal. "Esqueceu da sua gata? Ligue para mim! Ou vai me trocar por um churrasquinho de gato e cerveja quente?" Pronto, está feito. Agora é só esperar a ligação dele. Por onde andará a criatura? No Metrô? Em reunião? Por que não atende?

Abre a agenda e dá direto na página com a mensagem que relembrou ontem: "Amor é um não sei quê, que surge não sei de onde e acaba não sei como". Outra vez? O que será que os deuses estão insinuando? Que tudo acabou entre eles? Não, nada acabou! É só um desencontro. Agora, que amor é um não sei o quê está certíssimo! Mas que não sei o quê bom! Ótimo! Cadê o Pedro Paulo?

Liga para o celular dele. Nada. Liga para o escritório dele. "Está para chegar, quer deixar recado?" "Não, ligo outra hora". O Homem sumiu em São Paulo! Liga para o escritório da Saúde.

- Carminha?
- Sim. Adriana?
- É. Tudo bem?
- Sim, tudo calmo. Está em Alphaville?
- Ainda não. Alguém ligou?
- Só um cliente. Queria devolver um projeto.
- O Pedro Paulo voltou a ligar?
- Não.
- E a Ruth?
- Tá calma. Cantando. Limpando a mesa. Já jogou um monte de papel fora.
- Também, com o que vi ontem, é para cantar muito!
- Conta, conta. O que você viu?
- Não posso contar, perco a promoção.
- Então nem devia ter falado!
- É que está preso na garganta. Mas não posso contar. Morre comigo.
- Isso não se faz. Vou morrer de curiosidade!
- Amanhã eu conto, se der.
- Você vem amanhã?
- Acho que sim. Por que?
- Vamos comprar um bolinho para comemorar. Em tem as flores.
- Que flores?
- Não conto, surpresa!
- Retaliação?
- Sigilo por sigilo.
- Amanhã devo estar aí. Mas não depende de mim. Vai que tenha mais palestras. Preciso ir para aí ver os pedidos do cliente. Se eu ficar embromando aqui não bato as metas! O negócio é vender!
- Com certeza! E nós perdemos as gratificações!
- Isso! Como é para o bem de todos, diga para a Ruth que amanhã vou para a Saúde!!

Ela volta à agenda. Verifica os compromissos. Liga para Carmem: adia, transfere para fulano, liga na fábrica e cobra o pedido, vê se o projeto tá pronto, etc. Chefia. Da mesa da padaria. Poderosa, executiva. Precisa de uma agenda maior. Ainda bem que está no fim do ano. Com certeza ganhará uma grande, com capa de couro e letras douradas, igual a da Ruth. Só que será o nome dela gravado na capa: Adriana de Paula Morais.

Vasculha a já gasta agenda. Entre folhas encontra um papel azul dobrado. Abre, é uma poesia que ganhou de Pedro Paulo.


Um Beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor

Ana Cristina César

Que namorado gostoso! Cadê esse homem? Preciso já de um beijo blue!!

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