Pego as correias para passear com os cachorros. Na verdade, duas cadelas. Gêmeas. Elas saltitam ao meu redor, dificultando a colocação das coleiras e atrasando a nossa saída. Alegria em excesso pelo passeio tão almejado? Talvez. Chamo-as de burras, antas, tento explicar que assim não é possível, ralho com elas, mando-as ficarem quietas, colaborarem, etc. (jogue a primeira pedra quem nunca falou com seu bichinho de estimação), mas não adianta. Com esforço, consigo segurar uma daquelas pulgas caninas e colocar a sua coleira. A outra, para atrapalhar mais, começa a morder e puxar a correia da irmã. Mais algum esforço e consigo encoleirar a segunda. Estamos prontos para a jornada pelas calçadas da cidade? Ainda não. Agora, além de saltitarem, latem e se enrodilham. Luto para desembaraçá-las, acalmá-las, colocar ordem na turma. Agora sim, já posso abrir a porta dos fundos.
Enfim consigo sair de casa. Começa a novela do elevador. Enquanto aguardamos a chegada da máquina, as duas ficam captando os odores do vento provocado pelo movimento do ascensor. Pelo movimento das cabecinhas, muita coisa está sendo identificada naqueles ares. Que informações o vento trás até elas? Sinto inveja, a mim só chega o cheiro característico de poço do elevador. Quando ele chega, abro a porta e elas pulam para seu interior. Agora é hora de checar o tapete, verificar quem andou por ali, caninos e humanos, e, se eu bobear, deixar sua líquida marca. Uma pequena tensão nas correias é suficiente para elas se comportarem. O elevador parte, elas grudam os focinhos na porta interna, apreendendo novos aromas, que devem ser deliciosos conforme indicam os curtos rabos balançados em ritmo frenético. Ele para (sem acento, como manda a nova regra) no térreo e abre a porta da cabine. Elas viram-se para mim e esperam o comando de partir. "Vamos", digo abrindo a porta do elevador. Elas saem em disparada, tal cavalos puxando uma biga.
(Parênteses: o corretor ortográfico acusa erro para a palavra biga. Ignorante, não? Nunca viu Ben-Hur ou Gladiador. Para espancá-lo, consulto o dicionário eletrônico. Tá lá a palavra, com o sentido que nós cinéfilos conhecemos. Só que ele complementa que a palavra "biga" é um "diacronismo: arqueologia verbal". Que seria um diacronismo? Melhor voltar aos cachorros).
Consigo controlar a parelha e seguimos pelo corredor do prédio. Enfim colocamos patas e pés na calçada. É o suficiente para elas desaguarem. Pelas marcas na entrada de serviço do edifício, são todos os moradores caninos deixando suas marcas ali. Ao vê-las, não posso deixar de lembrar de um enorme cão preto que morava no prédio ao lado do meu. Mal saía do edifício, regava abundantemente um poste metálico ao lado da sua garagem. Eu observava a situação pela manhã, mas aquilo devia se repetir de tarde e/ou de noite. Um dia, de surpresa, o poste soçobrou, base totalmente corroída, fechando a entrada da garagem. Hoje os postes são de concreto, haja cão preto para derrubá-los.
Gêmeas, já disse. Mas tão diferentes. Na rua, uma vai à frente, cabeça erguida, orelhas em pé, rabo levantado. Caminha como se fosse um leão, patas firmes postas no chão, peito estufado, senhora da situação, pronta para dominar o mundo, subjugar quem ousar aparecer na sua frente. Até rosna, às vezes. Tal qual um pitbull matador micro toy. Só perde a pose para dar uma cheiradinha nos postes do caminho. Ou fazer o número dois, prontamente recolhido por mim, seu escravo.
A irmã segue atrás, olhando de lado, rabo entre as pernas, procurando um canto, uma parede para se esgueirar. Passo vacilante, orelhas caídas, narina ativa identificando os riscos do caminho. Mais parece um rato branco, um hamster do que um cão. Uma vez ou outra, dá uma puxadinha na perna traseira, defeito de nascença. A primeira late, a outra escuta.
E lá vamos nós três pela calçada. Vamos é forma de dizer. Passado o entusiasmo inicial, poucos metros à frente, a segunda começa a empacar. Falo "vamos", ela vai. Alguns metros, empaca. "Vamos", ela segue. A situação se repete mais algumas vezes. A cada empacada, tenho que conter a outra, a leonina cadela. Em resumo, uma puxa para frente, outra para trás, não há gladiador que consiga vencer a corrida assim.
Consigo chegar até uma árvore frondosa. Pausa na sombra para beber água. O pitbul dá largos goles, o hamster molha a lingüinha. Insisto. Nada. "Quem bebeu, bebeu, quem não bebeu, passar bem", digo despejando a água na raiz da árvore. As duas me olham. Uma firme nas quatro patas, a outra já sentada nos quartos traseiros. Eu em pé, no meio das duas, correias na mão.
Uma pergunta com o olhar por que paramos, se existe tanto mundo para conquistar. Ela meneia a cabeça como indicando o caminho seguir, os postes enfileirados a cheirar, gente a encarar, cães a combater. "Navegar é preciso", parece dizer. A outra me interroga com o olhar, inquirindo por que seguimos pelo mundo a fora, se temos nosso cantinho para cuidar, sombra, água fresca, comida farta, sossego. "Cachorro não foi feito para andar e sim deitar aos pés do dono e cochilar, sempre atento como escoteiro, mas cochilando", ela parece querer me explicar. Uma olha segura, firme; o olhar da outra é pedinte, desolado. Que fazer?
Troco olhares com elas. Uma quer ir para o norte, outra para o sul. A cansada pensa que cada passo para frente significa mais um passo para voltar, ó dificuldade! Nota-se que ela não sabe geometria, pois estamos dando a volta no quarteirão. Cá no ponto que estamos é mais perto seguir em frente do que voltar por onde viemos. Para a outra, cada passo à frente é uma conquista, mais espaço para chamar de seu. Que fazer? Brinco com as duas, enrodilho as correias, separo-as, pronto. Agora as duas olham para o mesmo lado, uma pensando em ir para casa, a outra em cair no vasto mundo. "Vamos para a casinha!" Taí um termo que elas entendem.
Partimos. O homem, o leão e o rato. O leão seguro, conquistando o mundo, sem perceber que é caminho já percorrido. O rato, parando uma vez ou outra, querendo confirmar que o caminho é o certo. Mas como saber, se é apenas um cão? Olha para mim, confia e segue.
Frente do prédio. Local do deságue (sem trema, por favor, seu corretor ortográfico ignorante!). Uma logo reconhece a entrada e saltita de alegria. O rabinho é agitado freneticamente: "Minha casa, minha água, minha comida, meu cobertor!" A outra, sem entender, saltita também, mas quer seguir em frente. Late para prosseguir. O porteiro abre o portão. Ela late para ele e cede: entra contente, por hoje chega, já conquistou muitos mundos, precisa descansar, o mundo não vai acabar hoje. Missão cumprida!
(ps: a quem interessar possa: diacronismo - método diacrônico de estudo lingüístico; enfoque ou tratamento diacrônico. Por sua vez, diacrônico: relativo ao estudo ou à compreensão de um fato ou de um conjunto de fatos em sua evolução no tempo; relativo à abordagem dos estudos lingüísticos que focalizam a evolução histórica dos fatos de uma língua. Agora, sim, entendi tudinho: biga é coisa do Ben-Hur!)
José FRID
Atualização em 2013: no início de abril morreu a Lindinha. Tequila morreu no ano passado. A biga já não existe mais. Uma lágrima.
Atualização em 2013: no início de abril morreu a Lindinha. Tequila morreu no ano passado. A biga já não existe mais. Uma lágrima.
6 comentários:
Hahahahahah!!!
Tio, ri muito com o seu texto! Eu ja levei suas cachorrinhas pra passear,
e vc consegue descrever mais que perfeitamente como é a situacao! Demais!!
D.
Como sempre...que deleite ...vc escreve muito fluente...adoro ler
bjs
Rê
Olá Frid....não sabia que vc é cachorreiro........beijitos
D.E.
fantástico!!!! também converso com meus bichos (2 calopsitas): Timóteo e Mozart....
I.
Adoro história de gente comum, de cão, de leão, de rato, de sofá, de ponto de ônibus, de casal. E por falar em casal, cadê eles?
E esse texto, é ficção? Ou você caiu no conto do bichinho de estimação?
E.
B.
Não é ficção: é condensação de minhas experiências reais! Veja comentários no blog.
Por falar nisso, o "leão" está com diabete. Pode?
O casal está na praia. terá breve regresso.
Um abraço
FRID
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