terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Arrufos Metropolitanos - XXIII

Ele desce na Sé para pegar a linha Norte-Sul. Sobe as escadas rolantes até a plataforma superior da estação. Encosta-se ao muro da abertura circular que permite visão dos trens das duas linhas, uma sobre a outra, em cruz. Quem sabe ela já voltou de Alphaville? Ele procura Adriana nas pessoas que lá embaixo saem dos trens. Nos intervalos entre eles, procura por ela na plataforma onde se encontra. Poucas esperanças. Mas o acaso, quem sabe? Ele poderá fazer o reencontro dos dois. Se na primeira vez foi assim, por acaso, por que esse acaso não pode se repetir hoje? Agora?

O elevador-camisinha de Adriana está ao seu lado. Sobe e desce trazendo deficientes. A cobertura de vidro deixa passar a luz do sol e um pouco do barulho da fonte acima da estação.  Tanta gente e nada acontece. Nada. Mas agora está tranqüilo. Amanhã reverá sua pimentinha. Levará flores para a Saúde. Sábado conhecerá toda a família. As Pimentas de Paula, os Pimentões. Entregará o anel na quinta ou no sábado? Tem que decidir até amanhã de manhã, antes de sair de casa. Ou levará o anel e esperará os sinais do acaso, a oportunidade para entregar a jóia?

Talvez seja melhor deixar para um encontro a dois. No meio do povo, seus colegas ou sua família, pode ser que ela fique acanhada e tenha uma reação inesperada. Ele ficará, com certeza. Espera apenas um sim. Um simples e delicioso sim. Um imenso e colorido sim!

Mas tem que saber a ocasião certa. Não dá para andar com o anel no bolso esperando uma oportunidade. A caixinha, apesar de pequena, é incômoda. Não pode ser carregada disfarçadamente no bolso da calça, da camisa ou do paletó. Todo mundo nota que tem uma caixa ali dentro. Até o ladrão. Ela logo vai perguntar o que seria aquele volume, aquele caroço no bolso dele. Os colegas do trabalho. Certamente a mãe, aquela inquisitora. Poderia levar o anel sem a caixinha. Medo de perder. E quebra o romantismo. Precisa ter a caixinha.

Melhor deixar o anel no fundo do armário até uma ocasião mais romântica. Só os dois e o anel. Quem sabe na quinta à noite. Ou sexta. Domingo próximo. Sábado não, pelo visto o churrasco vai tomar o dia todo e entrar pela noite.

Conclui que o acaso não está trabalhando hoje. Pega o trem para o Paraíso, troca para a Consolação. Segue alerta para identificar na multidão uma mulher de cinza e laçarote vinho nos cabelos, sua Adriana. Pedro Paulo está tão tranqüilo que só percebe que a estação Consolação já tinha passado quando, ao se abrirem as portas do vagão, ao invés de se deparar com as "Quatro Estações" da Tomie Otake no escurinho da estação, defronta-se com as fotos da Sumaré e a intensa luminosidade de São Paulo. Surpreso, desce. Eles dois têm fotos ali com aquelas pessoas estampadas nos vidros. Quem seriam? Fotos das fotos. Adriana beijando o menino oriental. Ele dando um soco no rapaz que lembra o Pitta. Lá fora o sol castiga o verde das encostas, o céu brilha por cima dos prédios de Perdizes e do Pacaembu. A Sumaré apresenta um tráfego decente a essa hora do dia. Do outro lado, a Papa João Paulo também segue célere. São Paulo um paraíso?

Ainda tranqüilo, resolve voltar a pé para o escritório na Paulista. Estenderá o horário de trabalho como compensação. Noite adentro. Sem Adriana, que fazer? Voltar para casa? Um cinema sozinho? Nem pensar. Trabalhar, trabalhar. Fatigar o corpo, descansar a mente.

Dia excelente, céu azul, sol forte. Sai da estação. Sobe as escadarias. O belo prédio do Centro de Cultura Judaica do outro lado do viaduto. Para lá, no meio dos outros prédios sabe que está o Teatro Viga. Ele e ela freqüentam os dois. De dia, de  noite, mas sempre de Metrô. Os trilhos como artérias da cidade, carregando o essencial para sua sobrevivência. Que venham mais trilhos, São Paulo qual Paris!

Quem será que teve a idéia de colocar a estação sob o viaduto? Gênio! A turma do rapel adorou. Ela já pensou em praticar com aqueles loucos, ele conseguiu demovê-la: não queria perdê-la num acidente. É o amor? Vale mais que um anel? Prometeu fazerem um Bungee Jump juntos:ou sobrevivem os dois ou morrem juntos. Não gostaria de sobreviver a ela, declarou. A menina derreteu-se toda: que lindinho, que romântico. Valeu mais que um anel com pedrona cintilante!

As duas torres laterais do prédio da Cultura Judaica fazem com que ele simule uma Torá semi-aberta, em posição de leitura. Outro gênio arquitetônico. Ao contrário daquele que inventou uma cúpula horrorosa para a Praça do Patriarca. Deveria ser enforcado lá no pilar de sustentação como exemplo para os demais. Mas não só ele, também os que aprovaram a idéia e a viabilizaram. Até a prefeita!

Ele pára no meio do viaduto, que vibra à passagem dos ônibus. Ao longe as montanhas da Zona Norte. É por lá que mora Adriana. Onde, exatamente, descobrirá no sábado. Se conseguir o endereço. Teve vergonha de pedir para a mãe dela. Nunca se interessou por ele, agora está a sua procura. Certamente Adriana lhe dará, pois sabe que ele desconhece onde mora. Mas cadê-la? Cadela? Doce carrorrinha! Vem pro seu cachorrão.

No fim do viaduto, o Cemitério do Santíssimo Sacramento. A última morada. Uma avenida curiosa. Hospitais de um lado, cemitérios do outro. Quem chegou primeiro? O ovo ou a galinha? Mata, enterra. Em destaque, no cemitério, o Mausoléu do Médico. Agradecimento aos fornecedores? Mas por que está pensando nessa bobagem num dia tão ensolarado? Bem que sua vó dizia que mente desocupada era oficina do diabo. Mas talvez esteja pensando em Adriana, de forma enviesada. A mente é louca.

Eles dois, tempos atrás, passearam no cemitério num sábado, matando tempo, mas não naquele ali, no da Consolação. Fazendo hora para ir ao cinema. Que expressão esquisita: fazer hora. A gente faz hora exatamente não fazendo nada. Ou seja, fazer hora significa desperdiçar tempo. Como ele está fazendo, agora.

Lembra bem do dia. Feijoada no Sujinho, filme no Belas Artes. No meio, algumas horas em aberto. Consumidas no Consolação, entre túmulos, árvores e ruelas. Ela se deitou numa lápide em granito azul marinho, tal uma Julieta, com folhas secas caindo nos seus cabelos. Beijos, abraços mils, só não se amaram ali mesmo, naquela hora, porque uns funcionários passaram avisando que estava na hora do cemitério fechar.

Acalentaram por algum tempo a idéia de se amarem na casa dos mortos. Numa noite escura, quem sabe voltando de uma balada, de roupas escuras, pulariam os muros e se transariam até o sol raiar. Num dia, ela estava cansada, no outro era ele, uma vez a discussão pelas roupas apropriadas, o assunto foi morrendo, morreu. E não foi ao cemitério. Como o Bungee Jump. Que ficaram para as calendas gregas, como falava seu avô.

Ele caminha pela rua dos cemitérios e hospitais, que também é das flores. Flores mortas e plantas vivas. Para mortos e vivos. Não necessariamente nessa ordem. Sempre que os dois passam por ali dão uma entradinha no cemitério e visitam a estátua do pintor, no alto do túmulo de granito escuro, com sua palheta e pincel, pronto para mais um quadro. Deve ser paisagista, a vista lá de cima permite ver os verdes do Pacaembu e as montanhas do horizonte, o pico do Jaraguá, as matas da Cantareira, as árvores do Pacaembu ....

Passando por esses cemitérios pomposos, lembra-se daqueles que encontrou nas cidades americanas que conheceu na viagem da Califórnia, um amontoado de lápides simples em canteiros na beira das ruas e estradas. Gramados, algumas árvores, sem muros, cercas, no caminho de casa .... dá para dar uma paradinha no ir e vir e deixar umas flores ...

Ele é retirado de seus pensamentos pelo som agressivo qual um bate-estacas trabalhando, que vem de um veículo parado no semáforo. Quanto pior o carro, maior o volume do rádio e pior a música. Será que o carro da Adriana tem um som assim? Mas quem diria, a mulher tem automóvel e dirige! E ele não sabia! Parece marido, o último a saber. Pela agitação dela, é bem capaz que dirija com som alto, cantando, gesticulando, dançando. Mas não esse baticum horroroso! Quem sabe uns sambas, ou sertanejos de Avaré?

Deixa a Doutor Arnaldo e alcança a pracinha no final da Paulista. Dos bares. Zeibar´s, onde bebeu, comeu e dançou às custas das tias, balzacas ou um pouco mais. Metrópolis, as gatinhas se divertindo as suas custas. Riviera não, só sapatas. Nada contra, mas não dá para disputar mulher com elas.

Paulista com Consolação. Deixa-se ficar observando o intenso movimento de veículos e pessoas. O Belas Artes bem em frente. Ao lado, as obras da futura estação do metrô, que vem da Luz. Uma safena no coração da cidade. O corredor de ônibus, ponto bem em frente a ele. Já andaram tanto por ali. Cadê sua moça?

Talvez ouvindo sua prece, ao seu lado pára uma mulher com tatuagem floral no braço e uma estrela no peito. Quantas mais esconde sob as roupas? Ela percebe seu olhar e sorri para ele. Retribui o sorriso e se contém. Adriana, Adriana, não me deixe só!

O tráfego pára, a tatuada atravessa a rua, ele hesita mas também cruza o asfalto, ela olha para trás e sorri novamente para ele. O que fazer? Ela alcança a calçada e desce a Consolação. Ir atrás? Ele pega a Paulista e segue seu caminho rumo ao escritório. Nunca se interessou por tatuagens.

A larga calçada está lotada de viúvas negras. Saíram de alguma missa de sétimo dia da Igreja de São Luiz? Algumas daquelas que viu no Tatuapé estariam por ali? Será que elas são obrigadas a se vestir de preto por alguma norma empresarial ou mania do chefe? Ou é imposição de estilistas homossexuais? Ou insegurança delas mesmas em usar cores? Ainda bem que ele é homem, tudo mais fácil, a moda não muda.

Gosta de andar pela Paulista. Resumo e símbolo de São Paulo. Ampla avenida, belos prédios. Cinemas, restaurantes, museus, bares, livrarias, bancos, hospitais, tudo ali, até um parque com mata atlântica. Se dependesse dele, moraria ali mesmo, no prédio de varandas, ou naquele do lado do Gazeta. Adriana gosta dali também. Mas mãe, pai, irmão, querem que ele volte para Santos. Ele resiste. Por Adriana?

Não que Santos seja ruim, mas é passado. E, afinal, ele não é Pedro Santos, mas Pedro Paulo, logo de São Paulo. Aqui é seu lugar. Tá no nome. Essas coisas a gente não pode contrariar. E São Paulo é Adriana. Sem ela perde São Paulo?

Não pode falar isso perto de sua mãe, senão é capaz dela fazer uma promessa a Nossa Senhora de Monte Serrat para separá-los. Prometer subir os quatrocentos e tantos degraus. De joelhos ou com uma vela imensa, do tamanho dela. Como fez com ele e o irmão, quando escaparam de servir ao Exército. Ou ao passar no vestibular. Quando seu irmão desmanchou o noivado com uma sirigaita, na opinião da mãe. Promessas poderosas.

Tanta mulher na rua, mas nenhuma é Adriana. Cadê sua menina? Até que o príncipe Charles não estava tão errado em querer ser o absorvente da amante, estar sempre junto a ela. Só errou na mulher: Diana dava de dez a zero na Camila Parkes. Porém, só o Charles para saber quais são os encantos da Camila. Quem ama o feio, bonito lhe parece, diz o ditado popular. Vai ver o Charles conhecia a piada do negro doente, fraco, que não conseguia arrumar mulher. Achou uma lâmpada mágica e fez três pedidos ao gênio: quero ser branco, cheio de sangue e viver cercado de mulher. Pronto: virou absorvente feminino. E de sangue azul, como aparece nas propagandas da televisão.

Estaria agora com Adriana em Alphaville se fosse o sempre-livre dela. Vinte e quatro horas com ela. Não precisaria procurá-la pela cidade. Mas seria homem de uma mulher só, para sempre. Melhor ir trabalhar, não é príncipe nem fala com plantas.

No escritório imerge no trabalho. Papéis, computador, telefone, colegas de trabalho, e-mails, trabalho, trabalho, trabalho. O irmão liga para ele na hora que acha ser do almoço:

- E aí gatão, tudo bem?
- Sim. Que manda?
- Tô gostando de ver, pegando todas!
- Eu? Todas? Sou homem de uma mulher só!
- Deixa disso. Aqui em baixo só se fala nisso....
- Nisso o que?
- Tu parece mineiro, sô.
- Paulistano com muita honra?
- Santista! Não esqueça, santista da gema!
- Tá bom. Que você quer, estou cheio de trabalho!
- Não atende mais o celular?
- Não está comigo, não sei onde deixei.
- Mas vamos ao que interessa. O pessoal do cais do Porto quer saber se você está ou não com a Carla.
- Lógico que não!
- E os amassos de ontem? Já tá na Internet ...
- Pára com isso. Ela é que se aproveitou da minha fraqueza, bebi de estômago vazio ...
- Pára com isso digo eu. Vou marcar com ela e as amigas para sair no fim de semana. Tchau!

Carla. Adriana, não me deixe só!

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