Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra. As feras da tua família são estúpidas o tempo todo, numa insistência que me impressiona. Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E como de tudo faço literatura, graças à fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa, tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis anos. Reconheço: o teu pai, esse monstro de asas de morcego e orelhas de burro, é mesmo um homem sutil, joga com as minhas armas, e mal sabe.
E como, para completar, havia lua cheia – das derramadas – sentei no meio-fio e puxei dois charutos de maconha, com os cães latindo atrás de mim num furor melancólico.
Cristovão Tezza in"Trapo" (Record, 2007, 7.a edição), romance lançado em 1988.
(via Todoprosa de Sérgio Rodrigues)
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