quarta-feira, 10 de junho de 2009

Na ruela



Sinos repicam ao longe. Em algum lugar certamente uma rádio transmite a "Ave Maria" de Gounod. A ruela está lotada de pedestres. Não rumam para o templo, os sinos já não chamam para a missa, marcam apenas o atraso de cada um. Dirigem-se ao Metrô ou às escolas, faculdades e cursinhos dali perto.



São tantos nos dois sentidos, todos apressados como bons paulistanos, as calçadas estreitas, os camelôs e suas banquinhas, que os carros rodam lentamente com medo de esmagar alguém mais afoito ou distraído.



Nesta hora do dia não está frio nem quente, nem claro ou escuro. A viela está impregnada pelos aromas deliciosos dos churrasquinhos de gato sendo preparados nas grelhas a carvão. E, é claro, pelos venenosos gases que escapam dos milhares de veículos presos nos engarrafamentos da região.



Mas nem todos caminham ou mercadejam naquela ruela. Lá, bem na curva, sob a árvore mirrada, alguém jaz na calçada, sob um sujo cobertor, indiferente aos passantes, aos carros, aos vendedores. Todos desviam daquele monturo, mesmo que tenham que para o asfalto, pois sabem que aquilo não é lixo, índio ou mendigo. Apenas mais um cidadão tocando a vida do jeito que dá.



Sabem que o cobertor não é só agasalho e acalento, mas teto, parede, chão – chão não, que é um papelão –, enfim um elemento delimitador do espaço privado de seu proprietário. E, como propriedade privada, deve ser respeitada quando cumpre sua função social.



Talvez por causa do repicar dos sinos ou, quem sabe, pela premência da fome ou de outras necessidades básicas, uma cabeça escapa lentamente do cobertor. Primeiro os cabelos negros, orelhas nuas, depois olhos ainda fechados, narinas ansiosas por ar puro (em São Paulo?), uma boca bocejante e um pescoço nu.



É um homem, que ocupa meio cobertor. A outra parte, pelo volume, protege todos os seus bens. Ele abre os olhos devagar, se acostumando com a luminosidade. Revira os olhos e move a cabeça, reconhece o local onde está. Seguro, espicha as pernas sob a coberta que, com o movimento, descobre seu braço esquerdo. Está de camisa de manga curta. Sem relógio ou pulseira, mas com uma tatuagem que, à distância, não dá para identificar.



Coça a cabeça com a mão liberta. Vê-se que sente prazer no movimento. Fecha os olhos e se deixa levar, quem sabe reflete sobre a paz mundial. Depois surge o outro braço, no qual apóia a cabeça qual travesseiro. A mão esquerda penetra na coberta e passa a ajeitar suas partes baixas. Agora, certamente, é a condição humana o objeto de suas reflexões.



Calam-se os sinos. Os carros acendem seus faróis, as pessoas não param de passar. Ele livra a perna esquerda do cobertor, deixando à mostra uma calça, talvez um surrado moletom, e meias que foram brancas. Dobra o joelho, pondo o pé sobre o papelão. Troca o apoio da cabeça e com a mão livre procura algo sob o cobertor. Acha um gasto pé de tênis. Quem dorme na rua e se descuida, acaba andando descalço. Joga o calçado para próximo da perna dobrada e consegue calçá-lo sem se levantar. Não há cadarços e na rua não se pode ser exigente com o número do sapato.



Ele repete a operação com o outro pé. Pronto. Já pode se levantar, mas para quê? Olha ao redor e não vê nada que lhe interesse. As narinas captam os churrasquinhos, mas o cérebro sabe que ainda não é hora das sobras.



Ele vira-se para o volume a seu lado e mexe em algo sob o cobertor. O monturo estremece. Um cão? Ele puxa o cobertor e ...... uma mulher!



Ela dorme de lado (ou finge que), dando as costas para ele. Cabelos encaracolados, brincos pequenos brilhantes, sem maquiagem. De longe lembra a Susan Boyle antes da fama. Será que a voz é a mesma? Ele a descobre mais um pouco. Blusa com estampas florais desbotadas, as costas no ritmo da suave respiração. Ele está enlevado com sua querida. Com a mão livre faz cafuné nela, entrelaçando seus dedos nos caracóis dela.



Nota-se que ela sente e gosta daquele carinho, mas os olhos continuam fechados. Sonha? Não importa. O carinho isola os dois, transporta-os para um lugar mágico, só frequentado pelos amantes de todas as épocas. Lá onde não há pedestres, carros, sinos, fome ou frio. Só desejo, carinho, amor.



Ele se aproxima e dá-lhe um beijo no cangote. Ela estremece e vira-se de costas. O busto agora arfa forte. Olhos ainda fechados. Satisfeito com o efeito provocado, ele acaricia a fronte dela, escorrendo os dedos até o ouvido. O pomo-de-adão mostra que ela não resistiu e engoliu em seco. Já acordou, certamente.




Pomo-de-adão? Não importa. São apenas amantes num lugar mágico. Enamorados.



José FRID

Um comentário:

Anônimo disse...

Poético!

Desigualdades sociais, miséria e demais mazelas sociais não impedem que sejam manifestados afeição, amizade, carinho, simpatia, ternura...
E outros sentimentos como a solidariedade e a fraternidade, por exemplo.
O amor é lindo!

A falta de amor é a maior de todas as pobrezas.
Madre Teresa de Calcutá

Ayrton