sábado, 25 de julho de 2009

Papo cabeça (ou papo da cabeça)

Em uma praia do litoral mexicano, a cabeça decapitada do jovem advogado Josué Nadal luta contra a areia ao mesmo tempo em que tenta entender o que a levou a esse trágico fim:
"Olho sem olhar. Tenho medo de ser visto. Não sou o que se chama "agradável" de ver. Sou a cabeça cortada número mil no atual ano no México. Sou um dos cinquenta decapitados da semana, o sétimo do dia de hoje e o único durante as últimas três horas e quinze minutos.
O sol nascente se reflete em meus olhos abertos. Minha cabeça parou de sangrar. Um líquido espesso corre da massa encefálica para a areia. Minhas pálpebras nunca mais se fecharão, como se meus pensamentos continuassem ensopando a terra.
Aqui está minha cabeça cortada, perdida como um coco às margens do Oceano Pacífico na costa mexicana de Guerrero.
Minha cabeça arrancada como a de um feto morto que tem de perdê-la para que o corpo acéfalo nasça apesar de tudo, palpite por alguns instantes e morra também, afogado em sangue, a fim de que a mãe se salve e possa chorar. Apesar dos pesares, a guilhotina primeiro testou sua eficácia cortando a cabeça não dos reis, mas dos cadáveres. Minha cabeça me foi cortada a golpes de facão. Meu pescoço é um tecido que se desfaz em farrapos. Meus olhos são dois faróis de espanto abertos até que a maré seguinte os leve e os peixes se metam na minha cabeça pelo orifício sacrifical e a matéria cinza se verta, inteira, na areia, como uma sopa derramada, perdida na terra, para sempre invisível se não for para desfrute de turistas nacionais e estrangeiros.
Carlos Fuentes in "A Vontade e a Fortuna" - Editora Rocco"
---
"Os escritores são profetas - entrevista do Estadão, Caderno2, 21 de julho:
Estadão - Entre os assuntos que dominam a realidade mexicana, a violência se destaca?
CF - Com certeza. Nunca houve tanta violência no México como agora - mais de 3 mil assassinatos apenas em 2009. E quase todos, ao menos 90%, provocados pela briga entre gangues criminais. O restante divide-se entre a ação da polícia e crimes cometidos pela população.
Estadão - Por outro lado, os escritores também antecipam a realidade.
CF - De fato, ao realizar nosso trabalho, que é criar ficção, acabamos nos tornando profetas. veja o caso de "A Vontade e a fortuna": escrevi a história antes que acontecesse uma série de decapitações em Guerrero, que fica no sudoeste do México, justamente a terra natal de um dos meus personagens, aquele que corta cabeças .... É curioso, pois minha intenção era exorcizar alguns assuntos e acabei profetizando."

Nenhum comentário: