segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Volta com o Willer



Mal acabei de ler o excelente livro do Willer, fui dominado pela necessidade de visitar o Edifício Quetinha. Por que? Não sei. Necessidade de quê? Necessidade simplesmente. Mas fazer o quê lá? Encontrar o Willer na marquise do prédio?


Abro o Google Earth. Visão satélica. Lá está o Quetinha, com sua lateral branco-cinza-sujo, um terraço no último andar. Na esquina oposta pela diagonal o restaurante citado por ele. Do outro lado da rua o edifício do sebo. Árvores frondosas em frente aos três. Palmeiras na calçada oposta ao restaurante.


Na Martim Francisco vejo o prédio novo da Editora Ave Maria. A enorme cobertura do Colégio Claretiano, indo até a Jaguaribe. A grande cúpula de uma igreja. Vasculho a região com meu satélite e não encontro nada que lembre uma sede da TFP. Aproximo minha lupa ao máximo mas não consigo localizar o santuário citado pelo Willer. Velas, flores, multidão orando, onde estão? A devoção morreu? A santa mudou de lugar?


Mas, realmente, o que vou fazer lá? Percorrer caminhos do Willer de Compostela? Ter uma epifania? Não conheci a Iara Iavelberg nem o Augusto Peixoto, não publiquei um livro (ainda). O Willer já disse que o sebo com o seu livro não existe mais. Loja de discos usados não me interessa. O que vou fazer lá? Qual o meu interesse? A arquitetura do Quetinha, com seu portão rente à rua? Comungar com os militantes da TFP?


As questões ficam irrespondidas. Folheio o livro, releio as passagens referentes aos acontecidos nos arredores do Quetinha. Tenho que ir lá. Estou com tempo disponível e irei. Uma olhadela só. As respostas estão lá. Se existirem.


Saio de casa com o livro debaixo do braço. Meu guia local. Mas nem precisa, já decorei. Na mão o guarda-chuva, pois ameaça chover. Será que vou ter que me abrigar na marquise do Quetinha, como o Willer naquele dia fatídico?


Resolvo ir a pé. O caminho, às vezes, é mais importante que a chegada. Vou pela Paulista, do Paraíso à Consolação, caminhos cruzados por Pedro Paulo e Adriana, personagens da minha novela em progresso. Quase no fim, posso seguir com o Willer e descer a Frei Caneca, passar pela Maria Antônia e Higienópolis, entrar na Martim Francisco, vendo as fachadas dos prédios, as casas remanescentes e as árvores tão íntimas dele. Para mim, solenes desconhecidos, estrangeiro que sou no planalto de Piratininga.


Caetano canta a poesia concreta de suas esquinas, a deselegância discreta de suas meninas. Sigo pela Paulista, e suas travessa e paralelas, tão embebido na minha novela, nos possíveis palcos dos personagens, nas fotos que irei fazer um dia para aquele prometido ensaio fotográfico, que me perco do Willer e o acaso leva-me por outros caminhos: Masp, Conjunto Nacional, Riviera, luzes, Consolação.


No cemitério o doce e enjoativo cheiro das flores ofertadas pelos vivos aos mortos. Santos e santas em profusão. Mil anjos. Nossa Senhora de todos os tamanhos. Percebo que um dos fatores que me atrai para esta jornada é o velório sem mortos em plena calçada, o militante da TFP ajoelhado sob o guarda-chuva, as flores e as velas, a Virgem na vitrine.


Cristos: sentado, de pé, pregando, pregado na cruz, com crianças, abençoando. Escrevi uma cena de Pedro Paulo e Adriana. Sentados num banco, sob uma árvore, a observar os túmulos e a comentar a fragilidade da vida, antes de irem para o Belas Artes. Procuro por todos os lados e não encontro um mísero banco. Os vivos não merecem descanso? Reescrever a cena realista.


Desço a Consolação, cruzo com o Willer na Maria Antônia, agora museu. Pego a Dona Veridiana, contornando e apreciando o casarão que dobra a esquina da General Jardim, sigo até a Sabará e a Marques de Itu. Quase na esquina com a Martim Francisco, também atrás das árvores, um singelo sebo de uma só porta, apenas um corredor comprido. O velho italiano não está lá, talvez aquele seja seu neto. A loja é clara e organizada, não parece a caverna descrita no livro. Entro e rapidamente verifico que os livros do Willer não estão ali. Bom sinal?


Martim Francisco, a uma quadra do Quetinha. Refreio meus passos para dar tempo de me preparar para a esquina willeriana. Preparar-me para o quê, exatamente? Mas quem disse que a vida é exata? A vida vive de acasos. Objetivos? Nem todos.


Passo pelo supermercado Madri, e por uma antiga casa de 1910. Do outro lado da rua o enorme e eclético restaurante citado no livro. Reconheço-o. Já estive ali num coquetel, muitos anos atrás, não tantos quanto aos da visita do Willer. Estacionei na rua, quem sabe bem na porta do Quetinha. Na ocasião não percebi o militante da TFP, as flores, as velas, a santa. Estavam lá? Ou será que foram removidos depois da publicação do livro?


Agora na esquina willeriana. Do outro lado da rua, o Edifício Quetinha, n.º 318. O portão dando para a rua Dr. Martinico Prado, sem recuo nem jardim. Na esquina uma pet shop, que não estava lá quando o Willer se abrigou da chuva. No lado direito do portão uma modesta sapataria de consertos de calçados, também não citada no livro mas que, pelo aspecto cansado, poderia ter visto o hesitante Willer. E agora, que faço? Espero alguém? Ou melhor, o que mesmo vim fazer aqui?


Esquina, lugar de encontros e desencontros. Duas ruas que se cruzam, fluxos que se entrechocam, se acomodam e seguem seus destinos. Iara, Augusto, o velho italiano, o devoto, todos se foram e eu estou ali sem saber para onde ir.


Ao meu lado o edifício do sebo. A loja de discos usados sumiu também. No local um cabeleireiro e uma clínica de estética dentária. Antes, o cultivo do espírito, com livros e discos. Agora, o culto ao corpo, cabelos e dentes. Deve haver uma academia aqui perto, com certeza.


Sou um homem parado na esquina. Observo, observo, sou observado. Desço a Martinico até a próxima esquina. Alguns casarões decrépitos, novos prédios sendo construídos. Subo de volta e paro na marquise do Willer. Observo. Ouço latidos na pet shop. Sinto o cheiro meloso de flores. O trecho estranho da cidade, a zona religiosa citada por ele. A santa está por ali perto. Procuro mas não vejo ninguém ajoelhado, nem velas e flores.


Desço a Martim Francisco seguindo o odor das plantas. Passo pela loja de molduras e quadros, e por uma oficina de encanador-eletricista faz-tudo. Pela descrição do Willer, procuro algo grandioso, uma estátua em tamanho natural, quiçá maior, em meio a um mar de flores, defronte a uma casa majestosa.


Prossigo, passo por uma casa simples, prédios, agora vejo um templo evangélico "Cristo é Vitória", que confirma a vocação religiosa da região, e um posto de gasolina, já na esquina com a Jaguaribe. Do outro lado da rua o Colégio Claretiano e seus janelões bem conservados, a fachada amarela. Sob eles, na esquina, uma farmácia: a cura aqui é química, quando não se acredita mais em rezas.


Atravesso e sigo pela Jaguaribe. Após o colégio, a igreja "Imaculado Coração de Maria", na qual estive para um casamento que ainda continua de pé. Em frente, a lotérica, vendendo esperança para quem não a acha nos templos da região. Ou, quem sabe, para quem acredita nas promessas divinas. Racionalmente me vejo impelido a nela apostar na Sena. Quem sabe a santa, o coração mariano, as bruxas, sempre há bruxas, não me ajudam a ganhar um pedacinho do céu?


O jogo é a resposta procurada? Não, falta algo. Por onde estão as marcas da Iara, do Augusto, do Willer? A santa? A casa da TFP? Volto pela Martim Francisco, agora pelo lado oposto. O colégio e seus janelões, o prédio novo, novo no tempo do Willer, da Editora Ave-Maria. O prédio velho usado como garagem ... de repente volta o cheiro de flores, aquele cheiro do cemitério. A santa! Onde está a santa? Vou até a esquina. As palmeiras entrevistas pelo satélite. Rígidas, verdes e enfileiradas qual a guarda de honra dos integristas, Plínio Correia, TFP. Deliro, são meras palmeiras tropicais, sem nenhum anauê especial.


Volto. Procuro pela santa dentro da garagem da Ave Maria, sob o olhar surpreso do segurança. Nada ali. Do outro lado da rua vejo uma mulher, de costas para mim, parada defronte à parede de uma pequena casa, bem ao lado do encanador-eletricista. Lê a placa com a extensa lista de serviços que podem ser prestados por ele e sua equipe? Não. Seus braços estão erguidos. Mãos postas. Ora!


Espero. Por fim ela faz o sinal da cruz e parte. As flores. A santa. Atravesso a rua. No canto da casa, pegada à entrada do encanador, dentro de uma vitrine, uma pequena santa. Vasos de flores no chão. Dezessete anos do cheiro enjoativo e embriagador das oferendas florais, desde Willer. Os suportes para velas estão vazios – hoje ninguém apelou para elas. Fico espantado como não notei a santa, suas flores e velas. Passei rente a elas. O pré-conceito – a suntuosidade esperada – impediu-me de ver a santa em seu nicho. Só senti o cheiro das flores.


Decepção. A estatueta é um pouco maior que a de Aparecida, a casa é singela, esquisita. Não há militantes ajoelhados. Será por que seja quarta e não sábado? A porta da casa está na outra ponta do imóvel. Porta de ferro, sólida, guardando que segredos? Sobre ela a plaquinha com a numeração da rua: 665. Quase. Falta um para ser a Besta. Falta alguém para a Besta do Apocalipse. Ao lado da porta a placa de bronze comemorativa dos cinqüenta anos de fundação da TFP, ali naquela casa. Em onze de fevereiro. Aniversário da minha irmã. Coincidência?


E o fiel devoto ajoelhado? "Não sei o motivo, mas faz alguns anos que acabou", diz o dono da oficina faz-tudo. "Jogavam água, coisas neles. Teve as brigas entre eles. Ou vai ver que acabou a fé, a santa deixou alguém na mão. Para mim foi ótimo, tirou esse povo da minha porta, atrapalhava os negócios". Penso que o livro do Willer tem poder. E os devotos? "Estão por aí, de olho na santa."


Na rua não estão. Procuro na loja de molduras, na pet shop. Viro a esquina. Depois da porta do edifício, a sapataria e, nela, enfim, o devoto. Calça social escura, camisa cinza de mangas cumpridas, gravata, cabelo cortado rente. Poderia ser também um crente do templo evangélico, mas o broche na lapela elimina qualquer dúvida. Visto-me quase igual a ele, exceto pelos cabelos compridos e pela falta de gravata. Encaramo-nos e trocamos olhares surpresos. Eu por encontrá-lo em tão prosaica atividade – remendando seus sapatos – para quem tem uma missão divina. Solas novas para andar com muita fé.


Mas qual a motivação da sua surpresa em me ver? Esperava-me? Vê em mim uma imagem deformada de si mesmo? O que eu estaria aparentando para ele? O demônio? Um comunista? Um ateu? O Willer? Talvez seja essa a resposta: surpreendo, ameaço, desesperanço.


Eu?


Após o reconhecimento mútuo, seguimos para lados opostos. Ele para sua vigília, eu retomando os caminhos willerianos. Praça da República, São Luis, Praça da Biblioteca, Teatro Municipal, onde começou a volta do Willer.


Acaso objetivo: no dia seguinte, no jornal que leio diariamente, a notícia: "vem aí longa-metragem sobre a guerrilheira e companheira de Carlos Lamarca, Iara Iavelberg, a ser dirigido pelo cineasta Flávio Frederico".


O Quetinha no cinema!!

José FRID

Atualização em outubro de 2012:

Até agora o filme sobre a Iara Iaveiberg não foi feito. O Flávio Frederico fez em 2010, mas estreando nos cinemas só em 2012, o filme "Boca" sobre Hiroíto, o rei da Boca do Lixo, uma região do centro de São Paulo, anos cinquenta-sessenta, onde havia muitas casas noturnas, strips, prostutição, drogas, bares, etc.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que bom! meu texto como ponto de partida do seu! gostei! abraço,
Claudio Willer
cjwiller@uol.com.br