sábado, 9 de janeiro de 2010

Sobre gatos - II


GATO

Amarra seu sono
a cobra que o corpo molda
a fabricar o ninho.
Enredos de caracol percorre o instinto enquanto
(composto)
o redondo se obra.

O tigre
(no gato entranhado)
desperta quando ele salta
e ata cada curva do bichano
à floresta
que lhe é estranha.

No seu pêlo um desenho se ateia
(é novelo intrincado de chamas)
ao encerrá-lo também acalenta
uma a uma das sete existências.

Salamandra, caça, concha.
Gato: viveiro de alheios.

Maria Lúcia Dal Farra in "Livro de Auras" (Iluminuras, 1994)

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O GATO

o gato é mais
que aquilo que se vê
pois quem olha assim só vê
o que no gato é demais

o gatoflex
o gato rosca
o gato sono
o gato miado

o gato é o que mora
dentro do olho do gato
menina no centro do íris
sua tara faro e tato

o gato lhe acompanha
onde quer que você vá
só com os olhos - não é besta -
para ele basta olhar

mas nos olhos traz o pelo
preto brilhante macio
um olhar quase vazio
de quem sabe admirar

seu olhar nunca é pedinte
de vira lata carente
nem é feito de ameaça
pastor domingo na praça

o olhar do gato lhe abraça
sem pieguice ou apego
pelo prazer de abraçar
o gato está no olhar

Chacal in "Belvedere" (Cosac Naify/7 Letras, 2007)

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LIÇÃO DE UM GATO SIAMÊS


Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade

O tempo fora
de mim
é relativo
mas não é o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
- dura eternamente
enquanto vivo

E como não vivo
além do eu vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)

Ferreira Gullar in "Muitas Vozes" (José Olympio, 1999)

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