Rua pacata, bairro periférico, cidade à beira-mar. Na esquina, um boteco. Ao lado, outro boteco. Os dois de última categoria. Após, casas simples, cinzas, indefinidas. Todos rentes à calçada. Alguns poucos carros estacionados. Inclusive o meu. Espero minha filha. Leio jornal e tomo conta do movimento. Assaltantes?
Do outro lado da rua, uma escola pública, sem aulas, férias. Ao lado, uma pracinha. Algumas árvores, canteiro de grama, caminho cimentado, não há bancos. O prédio escolar roubou dois terços da praça original, tornando-a imprestável. Ninguém lá está.
Aprendiz de motorista pratica suas manobras para estacionar. Duas hastes como marcação da vaga. Como tempo é dinheiro e a primeira impressão é a que fica, o professor instrui seu aluno e, ao mesmo tempo, limpa a lataria do veículo com uma flanela amarela. Para trás, diz e limpa o capô do carro. "Vire a direção" fala polindo a porta esquerda. Duas lições em uma: estacionar e limpar. Ou nenhuma.
Homens de bermudas e chinelos, barrigas à mostra, vêm dos ou vão aos dois botecos. Alguns ficam sentados na calçada à frente dos bares, comentando as novidades do dia. Mulheres passam arrastando sandálias e carregando sacolas de pano ou plástico. Crianças vagueiam por ali. De vez em quando uma bicicleta. Pombos pastam sujeiras da rua. Cachorros perambulam. O ar parado ajuda a criar o clima modorrento local.
Quando um veículo se aproxima, observo que os pombos levantam a cabeça, miram o intruso e dão aquela corridinha de passinhos curtos típica da espécie, mas apenas o estritamente necessário para não ser atropelados. Voar só em último caso. A minha filha precisava estar aqui para observar a cena. Ela freia o carro a cada pássaro que vê na rua, com medo de atropelá-los. Não precisa, sempre digo isso para ela. Ela fala que, se matar um pássaro, não terá mais coragem de dirigir. Não se preocupe, eles fogem na hora certa, reafirmo com convicção.
Surge devagar na rua lateral da pracinha uma picape rebocando uma caçamba. Dobra a esquina e entra na nossa rua. Nem dou atenção, viro a folha do jornal. O veículo passa por mim e segue para dobrar a esquina do boteco. Vejo a caçamba dar dois pulos ao passar por mim. A conversa dos homens à calçada pára de repente. O silêncio tira minha atenção do jornal e olho para eles. Estão olhando fixamente para a rua. Um farfalhar quebra o silêncio.
Dois pombos agonizam no asfalto. Seus cálculos falharam. Os sobreviventes enfim voaram. Aboletados nos telhados das casas, observam a desdita dos companheiros.
A rua parou. A aula acabou. A conversa morreu. Consternação geral. Ninguém sabe o que fazer. Como eu, muitos estão chocados, nunca viram um pombo ser atropelado. E ali são dois. Outro veículo dobra a esquina da praça e vai passar pelas aves tombadas. Um sentimento de apreensão e impotência domina a platéia. Os mais sensíveis viram o rosto. O carro passa, mas não sobre os pombos. Alívio.
Um pombo entrega os pontos e morre encolhido. O outro, talvez apavorado com a morte próxima, agita freneticamente suas asas em vão. Expira com elas abertas tal qual um cristo crucificado. Outro automóvel se aproxima. Os corações e mentes sofrem com o esmagamento iminente. Ele passa sem macular o asfalto.
Irrompe naquele cenário, saindo da escola, um homem nos mesmos trajes dos que aqui estão. Olha a platéia, os pombos, os cachorros se aproximando para comer. Marcha resoluto para o centro da rua, pega o pombo pelas asas abertas e o arremete por cima da auto-escola (o aluno se encolhe todo, o instrutor franze a testa imaginando o sangue emporcalhando sua reluzente máquina) até o gramado da praça. Dá dois passos e lá vai o outro lhe fazer companhia. Faz um esgar de desprezo para o público e segue seu caminho. A pracinha, reconheço, tem utilidade: jazigo.
O vôo final das duas aves quebra a comoção geral. A rotina volta a imperar. Os pombos retornam à rua. O aluno retoma suas manobras e o instrutor a limpeza do veículo. As pessoas vêm e vão. A conversa retorna à calçada. Apuro os ouvidos: evitam comentar a tragédia. Como admitir a fragilidade da vida? A gratuidade da morte? Volto ao jornal, viro a página. Manchete: chacina em Carapicuíba. Ninguém viu, ninguém sabe de nada.
Batem no vidro do carro, assustando-me. Minha filha. Abro a porta. Ela entra e pergunta se demorou muito. Não, retruco. Alguma novidade? Não, o que pode acontecer nesse lugar, pergunto ligando o motor.
Buzino ao sair da vaga, assustando os pombos que, enfim, voam. Minha filha pergunta se quero vender a buzina. Conto?
José FRID
(março/2006)
Um comentário:
Muito bom Dom Frid!
A.
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