sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Azul de sorte



Nascera no interior, onde morava sua família. Levava uma vida feliz. Ar puro das matas e bosques, alimentação natural, sem aditivos. Água? De preferência a dos rios e córregos. Ali era o paraíso!


Passava o dia correndo em bando com seus amigos por toda a região. O povo chegara até a reclamar com o prefeito sobre o barulho e a sujeira que eles faziam na praça, em alguns fins de tarde. Vida feliz, leve, solta. Cresceram e os hormônios agiram: fêmeas, we need a female!


Saíram à caça. A concorrência grande, a cidade pequena. Inseguro de seus dotes, ele resolveu abandonar a terra natal atrás de outros ares, onde tivesse mais chance com elas. Ademais, o mundo era grande, muitas coisas para ver e fazer.


Na cidade maior estranhou o pouco verde disponível, os córregos poluídos. Como quem não muda morre, logo se adaptou. Muita coisa industrializada para comer, outras com agrotóxicos. Água fresca de rio? Não mais! Agora vinha pelos canos, com leve gosto de coisas desconhecidas. As fêmeas? A concorrência ali também era grande. Mas, na verdade, quem precisava delas? O mundo era grande, muitas coisas para ver e fazer. Foi tocando a vida, arranjava o que comer e beber, o resto Deus providenciaria.


Tempos depois, viu uma linda espécime à janela de uma casa. Amor à primeira vista. Passou por ela mostrando o melhor de si. Reparou que os olhos dela brilharam. Era correspondido! Contornou o quarteirão e passou novamente pela janela. Notou que ela mudara de posição para vê-lo e se exibir melhor. Na terceira vez já passou cantando, exibindo sua bela voz e ritmo afiado. Foi surpreendido com a resposta dela, completando a melodia.


Vários dias cortejando-a, mas a situação entre os dois não evoluía. Não havia contato físico por causa das grades da janela. Um dia até apoiou-se nas barras metálicas, mas ela assustou-se e escondeu-se. Preferiu, então, não insistir em tocá-la: que fosse do jeito e no tempo dela.


Um dia, não muito depois, ao passar pela janela, deparou com as grades abertas. Ficou tão surpreso com o fato que não parou naquele momento. Deu a volta no quarteirão e parou na esquina: as grades continuavam abertas! Armadilha? Como saberia? Entretanto, nada seria pior que a situação atual. Assim, valeria arriscar, melhor ir para o tudo ou nada! Decidiu entrar e ter com ela.


Era armadilha, mas não se importou. Já tinha visto e feito muitas coisas pelo mundo, só faltava a fêmea. Dias de canções de amor, noites de prazer, comida e bebida à farta, nenhuma preocupação: liberdade para quê?


Assim estavam até o dia que ela revelou que teriam filhos. Foi abruptamente afastado dela e levado, numa viagem longa, para outra cidade. Só, na casa nova, a saudade forte fazia ele cantar melodias tristes, sofridas, melancólicas, que evocavam o amor perdido, a dor da separação, as matas e bosques nativos, a liberdade tolhida.


O povo não compreendia sua dor e aplaudia seu canto. Em retribuição às melodias agradavam-lhe com mimos, comidas especiais e banhos de sol, enquanto ele desejava a liberdade para rever sua amada e juntos voltarem ao torrão natal, onde os córregos cristalinos murmuravam e os passarinhos cantavam de alegria, soltos pelos bosques. Lá era o paraíso!


Aos poucos o canto foi diminuindo, a saudade ainda grande agora lhe calava a voz. Pensaram que ele envelhecera, ou pior, adoecera. Foi posto de lado como um traste velho, mas a comida, a bebida e o jornal novo vinham todo dia. Resignou-se, pois não via saída para seu problema. Seria assim o purgatório?


Um dia foi transferido de cativeiro, numa viagem curta. Uma casa cheia, com barulho enlouquecedor: muitos passarinhos cantando, cães latindo, homens gritando, fora a tevê, o rádio, carros buzinando, etc. Seria ali o inferno?


O sol, que já via por trás das grades, ficara mais longe, na varanda para onde nunca era levado. Emudecera de vez: nem ele se escutaria com tantos ruídos. Os homens brigavam entre si, os cães ganiam o tempo todo, os passarinhos cantavam cada vez mais alto, numa competição insana. O inferno era ali!


Assim estava posta sua vida até a chegada da viatura policial. Os homens ficaram preocupados com os policiais, os cães e os passarinhos. Eles trancaram os cães no quartinho dos fundos, que silenciaram sob as ameaças dos homens. O ressoar no assoalho das botas de cano longo dos policiais calaram os passarinhos. Ele gostou do silêncio, coisa rara nos últimos meses. Só soldados para por ordem no caos. O inferno teria policiais? Ou era o paraíso?


Os policiais vistoriaram gaiola por gaiola, registrando tudo numa prancheta. Os homens ficaram preocupados, justificavam-se a cada anotação. Eles não gritavam como de costume, falavam macio, com uma voz que não conhecia. Ou melhor, conhecia sim, escutara algumas vezes quando os homens estavam sozinhos. Sozinhos não, cada um sozinho com uma fêmea. Elas, sempre elas. Ele, quando estava com a dele, também cantava e encantava.


Os policiais não ficaram satisfeitos e prometeram voltar. Os homens estavam agitados, o mais velho brigava com o outro, dizia que tinha avisado que aquilo estava errado, mas que ninguém lhe dava atenção, achavam que ele estava velho. Os cães e os passarinhos voltaram à ativa, fazendo o fundo sonoro da discussão. Naquela noite, ainda, apareceu na casa um outro homem agitado. Os três discutiram de quem era a culpa dos policiais aparecerem na casa do homem mais velho. Decidido, o terceiro homem retirou os passarinhos e levou-os para uma caminhonete. As gaiolas encheram a carroceria. Sobraram poucos na casa, só os que tinham anilhas ou eram exóticos.


Ele também foi levado para a caminhonete e posto no banco da frente, ao lado do motorista. Nem ligou, pois pior que estava naquela casa barulhenta não iria ficar. A caminhonete rodou quase a noite toda. As cidades foram ficando para trás. Pensou em fugir, mas, naquela escuridão, para onde iria? Mas valia um pássaro na mão do que dois voando. O veículo agora percorria vagarosamente uma estrada de terra, subindo uma serra toda arborizada. Ele pensou que ali seria um bom lugar para fugir, correr para trás das árvores, sumir. Entretanto, não fez nenhum movimento neste sentido: estaria velho para decidir sua vida, arriscar-se nas matas? Enquanto pensava na finitude da vida, a caminhonete chegou ao seu destino.


Uma mulher saiu da casa. O homem foi retirar as gaiolas. A mulher abriu a porta do passageiro, bateu os olhos nele e abriu um sorriso. Ele simpatizou com ela. Fêmea é fêmea, eles iriam se entender.


- Um companheiro para a Bella Donna?
- Ele é chave de cadeia. Estou pensando em soltá-lo.
- Então solte os dois.
- Amanhã, depois que o sol nascer.


Entendeu-se perfeitamente com ela. E azuis ali só os dois, sem concorrência! Soltos, voltavam todos os dias para desfrutar da refeição matinal oferecida pelo casal. Agradeciam com melodias alegres, que evocavam o amor, o sol, as matas e bosques nativos, a liberdade reencontrada, enfim, o paraíso.


Mais vale dois pássaros azuis voando do que .....


José FRID


Veja aqui "Azulão" por Teixeirinha.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caríssimo,

graciosa história q pode ser adaptada aos seres humanos.

Aquele abraço...

Z.

Anônimo disse...

Olá, amigo!
Bela lição, vamos cuidar para não chorar mais tarde.
Gostei muito.
Bom final de semana com muito amor e paz.
Beijos no teu coração.

M.