Oito de agosto, domingo. Centro Cultural São Paulo, Sala "Adoniran Barbosa". A terceira idade está agitada:
- Cauby vai cantar aqui no domingo que vem!
- Não posso perder!
- Precisamos chegar cedo na fila para pegar ingresso. Começam a distribuir os convites na terça, duas horas.
- A gente tem que chegar ao meio dia pra conseguir ingressos.
- O Brahma está sempre lotado nos shows dele.
- Já foi?
- Não, a aposentadoria não dá para essas extravagâncias.
- Ele canta divinamente!
- Será? O homem já deve ter uns oitenta anos!
- O Sinatra cantou até morrer.
- No meu tempo só tinha cantor bom, com voz, não esse pessoal de agora.
- É verdade. Orlando Dias, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Ataulfo, Altemar Dutra
- Não esqueça do Nelson Rodrigues!!
- Que Nelson Rodrigues??? Acho que o alemão está te pegando! É Nelson Gonçalves!!
- Esse mesmo! Outro dia fui com minha filha no bar da filha dele.
- Combinado então aqui ao meio dia de terça?
- Meio dia não é muito cedo? Abre às duas.
- Pro Cauby não!
- Uma fica na fila e as outras vão almoçar. Depois trocamos.
- Ih, na terça não posso, é dia de informática. Tenho que entregar uma planilha.
- Que avançada a menina, não?
- Pode deixar. Eles dão dois convites por pessoa, um dos meu é seu.
- Quem vai poder vir pegar os ingressos? Um, dois, três, cinco. São dez ingressos, dá para todo mundo.
- É só ninguém faltar!
- Será que ele vai cantar "Conceição"?
- Não agüenta mais!
Quinze de agosto, domingo, dezessete horas. Centro Cultural São Paulo, Sala "Adoniran Barbosa".
- Espero que o homem cante muito. Maior sacrifício ficar nessa fila.
- Pior é quando venta, gela os ossos.
- O show é pequeno, só uma hora. E ainda tem um cara da Vai-Vai e uma mulher.
- Eu queria só o Cauby.
- O que o Cauby tem com esses sambistas?
- Minha linda, é o Adoniran, cem anos, lembra?
- No disco do centenário ele canta "Bom dia tristeza", do Adoniran e do Vinícius.
- Ele pode cantar tudo, é o máximo.
- A nossa fila está maior que a outra. Vamos mudar pra lá?
- Querida, parece que você nunca veio aqui! A nossa entra primeiro. Só depois vai o pessoal da fila comum.
- Aqui estão os fãs do Cauby e lá os do Tobias da Vai-Vai.
- Que frio! Será que vão demorar abrir as portas?
- Li que o arquiteto deixou tudo aberto aqui fora porque não queria criar barreiras para o povo. Era pra todo mundo entrar.
- No papel é tudo muito bonito, mas garanto que ele não precisou ficar na fila.
- Não se mistura com pobre! Deve ter vindo só na inauguração tomar uísque!
- Nem banco também não colocou. A gente tem que ficar em pé.
- A garotada se joga no chão para esperar. Tem uns que até deitam.
- Se eu sentar no chão não levanto mais!
- As escadas da sala é que vão acabar comigo!
- Quero uma foto com o Cauby!
- Eu também! Sabe o que aquele cara está vendendo?
- Qual, o da sacola? Cabelão?
- Ele mesmo. Elepês antigos do Cauby!
- Mas quem ainda tem vitrola?
- Eu tenho, mas ela está sem agulha.
- Então você não tem nada.
- Guardo de lembrança. Vou deixar pros netos ...
- Jogar fora!!
- Vai ver o pessoal compra os elepês pela capa. O Cauby era bonitão.
- Um peixão!
- Rasgo a roupa dele se bobearem!
- Que assanhada!
- Você não viu nada! No meu tempo ...
O show começa na hora marcada. Casa totalmente lotada. Todos esperando Cauby. Mas quem começa o show é o Tobias da Vai-Vai. Porte elegante, terno preto desabotoado, sem gravata, uma senhora barriga estufando a camisa branca, chapéu e sapatos também brancos. Entra já cantando um samba do Adoniran, vozeirão enchendo a sala. Agrada, é muito aplaudido. Os músicos acompanhantes são bons, percussão, cavaquinho, violão, bateria, tudo bem azeitado. Outro samba do Adoniran e ele parte para seu repertório próprio. Mais algumas canções e ele se despede sob muitos aplausos. A plateia gostou dele, mas olha preocupada para o relógio: seis e vinte. Quanto tempo sobrará para o Cauby?
Agora é a vez da Graça Braga. Bela e grande mulata, vestido estampado, cabeleira farta, vozeirão de boa sambista. Ela também começa sua parte com um samba do Adoniran, o que gravou na coletânea do centenário do excelso sambista. Muitos aplausos e consultas aos relógios: pelo visto vão sobrar só vinte minutos para o ídolo! Segunda música, repertório próprio. Ela chama um casal, que entra dançando como Carlinhos de Jesus ensina. Dançam juntos, separados, a saia curta da mulher vai subindo a cada movimento, atraindo a atenção total da platéia masculina. Ela arremata a dança saltando no colo do rapaz. Muitos aplausos, os homens gostaram principalmente das belas pernas grossas da mocinha, envoltas em meia arrastão. Graça começa nova canção, o que deixa as mulheres preocupadas com o tempo para o Cauby. Os homens estão atentos aos movimentos da bailarina, à procura de algo mais. Percebe-se alguma agitação na lateral da sala do outro lado do palco. Um segurança não para de falar no rádio. Será o Cauby? Outras músicas mais, com a plateia com um olho na Graça e outro na movimentação da segurança, e o Tobias da Vai-Vai volta ao palco. Seis e trinta e cinco. "Cadê o Cauby?", se perguntam os fãs. Os dois cantores puxam um samba muito animado do Adoniran, enquanto ajudantes colocam uma cadeira e a estante de partituras no centro do palco.
Os dois artistas encerram a música sob fortes aplausos e anunciam Cauby Peixoto. A plateia vem abaixo, com muitos aplausos e apupos. O ídolo entra no palco caminhando com muita dificuldade, apoiando-se num ajudante. Milhões de flashs são disparados. Ele sorri, está feliz, está na sua casa, o palco, lugar para o qual deu sua vida. Começa a cantar "Bom dia tristeza", pronúncia impecável, voz potente, mas bonita e aveludada, os fãs deliram. Logo esquecem a claudicante figura: é "A Voz" que está diante deles. Se chegue tristeza/ Se sente comigo/ Aqui nesta mesa de bar...
Tobias e Graça saem pela lateral, sabem que estão sobrando, a relação de amor é exclusiva entre Cauby e seus fãs. Os seguranças estão atentos, mas não terão problemas, as mocinhas assanhadas de antigamente agora são vetustas senhoras, que não conseguem mais correr atrás do ídolo. Só fotos agora!
Ele termina a bela canção, já sentado, sob frenéticos aplausos. Os flashs não sossegam, os gritos de "lindo", "gostoso" e "Cauby" quebram a pausa entre canções. Ele, acostumado com essas demonstrações de carinho, calmamente folheia a pasta de músicas até encontrar a letra desejada. Começa a cantá-la e a plateia aplaude aprovando sua escolha. Fim da canção, mar de aplausos e apupos. Pedem "Conceição", "Bastidores", "Conversa", "Chão de estrelas". Ele sorri para a plateia. Nova pausa à procura da letra certa, durante a qual ele conta que a música que irá cantar é especial, pois marcou a retomada da sua carreira. Os fãs aplaudem as palavras do ídolo. Quando ele começa "Bastidores" a turba urra de prazer, milhões de aplausos novamente. Ele termina a canção com o acompanhamento de milhares de vozes. Ele agora olha para os músicos e começa um samba do Adoniran, fora do programa combinado. Um momento de hesitação, mas a banda consegue acompanhá-lo. A voz dele não está muito adequada ao samba rasgado, mas Tobias e Graça, que estavam na lateral acompanhando o show, entram em socorro do mestre e os três cantam juntos. Os três só não, três mil vozes completam a música. O ídolo fica tão contente que emenda "Conceição". Essa ele canta sozinho, sob a reverência dos músicos e da plateia.
Dezoito horas. Missão cumprida. Ele fecha e beija a pasta de músicas. Duas pessoas ajudam-no a levantar e a caminhar pelo palco. Ele acena para a multidão, que aplaude, apupa, grita seu nome. A pessoa mais feliz ali no show é ele, vivo e com seu público fiel.
José FRID
Letra completa da canção "Bom dia tristeza", de Adoniran Barbosa e Vinícus de Morais: clique aqui.
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2 comentários:
VC é ,mesmo D+ .como diz a moçada de hoje,...e como ela se expressa bem ...D+...é isso , simples assim...:D+ .
Vc nasceu para escrever,comover,ensinar...Deus te conserve.
Que bom poder dizer...Sou amiga dele..ele escreve bem...pra ...D+ .
bjs
Rê
ET-que bom que em um mês coloco óculos e daí ...espero...nimguem me segura...verei todos esses encantamentos...
bjs
Assim vou ficar encabulado!!!
Quando você colocar os óculos vai conseguir enxergar a realidade do texto D-
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