segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Acorda

Acorda

Em meio ao que deve ser
ainda a noite. Seu grito,


porém, não se desfaz
no ácido escuro: cuspido


para além do corpo
à maneira de um osso,


permanece agudo, ali,
fincado entre a parede


e a cama. Pode vê-lo,
como quem vê doer a dor


fora de si mesmo. Fecha
os olhos, abre-os, fecha


o peito, respira, e o grito,
sólido, negro negror,


no mesmo lugar. A garganta
não pode trazê-lo de volta,


o sono não pode apagá-lo, o medo
vigia, o quarto carbonizado


pelo pavor é minúsculo,
é imenso. O grito assim,


matéria, parece ter peso:
não é leve, apesar de


acima do chão,
chumbo em levitação;


tem cor: a tinta da noite
em si mesma concentrada;


massa: totalmente caroço,
compacta; temperatura: é frio


como só pode o vidro,
frio que se irradia liso


e lança de si gelado o hálito
em que tudo – cômoda, quadros,


cama – afunda; o grito assim,
feito coisa, tem densidade:


a de um piano sem teclas,
só a sua glândula enfartada e dura;


tem cheiro, e pelo quarto
instantâneo se espalha: fedor


de borracha. Bicho que
depois de morto pudesse


saltar sobre a presa:
lei, sentença, decisão


sem preâmbulos e sem motivo. Mas
a mão da mulher acorda


e lhe pergunta. Um sonho,
um pesadelo, ele responde. E


volta-se para o lado. Cômoda,
quadros, cama respiram aliviados,


o dia tem pressa,
dormir é ouro.



Eucanaã Ferraz in Cinemateca, Companhia das Letras, 2008

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, amigo!
Saí do terra, anote o novo, ainda não tomei ciência desta nova ferramenta é diferente do que eu tinha, mas tudo bem.
Quanto a poesia, fiquei confusa, creio não acordei ainda, ha,ha,ha,ha.
Boa semana cheia de alegria e pouco calor.
Aquele abraço.
M.

Metamorfose Ambulante disse...

Saiu da terra e foi para a lua???

A poesia é confusa mesmo!

Tem que acordar (ou não).

Anônimo disse...

Impressionante o poema. Parece-se poder pegar com a mão alguns de seus trechos!
Abs.
O.