Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, seis horas da tarde, calor ainda escaldante. Hora do povo voltar para casa. Muitos, sem pressa, perambulam olhando lojas e camelôs, bebendo alguma coisa, fazendo hora para o Metrô, os ônibus, o trem e as barcas esvaziarem.
Uma das rodas de curiosos circunscreve um ambulante e seu caixote. Habilidade máxima, verve afiada, o homem teatralmente pega uma fruta da pilha sobre o caixote, na outra mão o aparelhinho metálico. Ele começa a rodar a laranja entre os dedos, a lâmina baila em volta da fruta, uma pequena tripa de casca vai surgindo e seguindo em direção ao chão, enquanto ele fala rápido sobre as qualidades do aparelho e como ele é imprescindível numa casa moderna. De repente ele ergue a laranja pelada, perfeitamente descascada, sem nenhum machucado ou sobra de casca. No chão uma perfeita espiral. Os espectadores murmuram entre si que o aparelho é bom mesmo. Ele faz a fruta circular de mão em mão para que todos possam sentir a suavidade da película branca e a perfeição do corte, enquanto ele apregoa as propriedades alimentícias da laranja, indispensável em toda casa, em especial naquelas que têm crianças ou idosos, sem contar os adolescentes e os intelectuais.
Ele finaliza a apresentação informando o preço da mercadoria, com desconto para duas ou três peças, para agradar a mãe e a sogra. Um ouvinte resolve levar um aparelho, que ele retira já embalado e etiquetado de dentro do caixote. Frisa que o instrumento tem garantia total, só trazer que ele troca em caso de defeito. Dinheiro guardado no bolso da calça, ele pega outra fruta e reinicia o show. Três laranjas depois, Cláudio fica convencido da utilidade do aparelho e aproveita a promoção de três peças com desconto. Presentes para a mulher, a mãe e a sogra.
Exibe os aparelhos como troféus para a mulher e apregoa as qualidades deles. Ela, descrente, diz que são mais tranqueiras inúteis. Ele retruca que o troço funciona mesmo, viu o cara descascar na sua frente. Ela diz que na próxima feira comprará laranjas para ele demonstrar.
Quatro sábados depois, ou seja, um mês inteiro, ele não aguenta mais as reclamações da mulher pelas laranjas estragadas e resolve provar que o aparelho funciona. A primeira laranja fica toda machucada, sangrando seu sumo. Ele diz que é preciso calibrar o corte, a profundidade de ataque da lâmina. A segunda permanece com pedaços de casca em boa parte da sua superfície. A terceira fica com pedaços de cascas e cortes, parece a superfície lunar. Resolve experimentar outro descascador, o da sogra. Três aparelhos e uma dúzia de laranjas depois, ele, exausto, diz para a mulher que irá pedir o dinheiro de volta na segunda-feira.
A polícia está marcando em cima, os camelôs sumiram do centro da cidade. Os aparelhos ficam semanas chacoalhando na pasta executiva até serem doados ao pessoal da limpeza do escritório. Dias depois eles agradecem os presentes, os aparelhos funcionam muito bem, uma maravilha. Onde ele teria errado?
Largo da Carioca, seis horas da tarde, calor brando. O povo nas ruas fazendo hora para a condução esvaziar. Rodinhas de curiosos cercando artistas mambembes e camelôs. Numa delas o showman com suas laranjas e aparelhos. Cláudio observa atentamente o homem operar o descascador, as mãos muito rápidas, as laranjas peladas em segundos. O hábil ambulante despe uma, duas, três laranjas, nosso herói mantendo o olhar fixo em suas mãos, como alguém que tenta descobrir o truque do mágico. O vendedor percebe seu interesse.
- Vai levar um, campeão?
- Comprei três e não funcionaram.
- Trás que eu troco.
- Passei para frente.
- E funcionaram?
- Disseram que sim.
- Gentem, prestem atenção nesse testemunho! Esse senhor comprou três aparelhos para dar de presente e todos funcionaram! Leve um você também!
O camelô consegue vender cinco aparelhos dessa vez. Cláudio faz sinal para o vendedor se aproximar.
- Quero comprar o seu, esse na sua mão.
- Tá usado, sujo ..
- Não importa. Esse eu vi funcionar.
O camelô entrega o aparelho, guarda o dinheiro no bolso, pega outro novo no caixote e recomeça o show, fabricando perfeitas espirais alaranjadas.
- Mulher, agora vai, este é pré-testado! Funcionou na minha frente!
- Não tem laranja em casa. Senta para jantar.
- Vou comprar agora!
- Deixa disso. Amanhã compro no mercado e você prova que estou errada!
Um mês depois:
- Lembra de mim? Já comprei quatro na sua mão e nenhum funcionou.
- Você não deve estar fazendo certo.
- Como você faz?
- Gentem, atenção, vou demonstrar como utilizar o aparelho. É muito fácil!
Quinze dias mais tarde:
- Agora quero comprar as laranjas!
- Não posso vender, preciso delas para trabalhar.
- Comprei cinco aparelhos e nenhum funcionou.
- É laranja pêra comum, que compro na feira ou no mercado.
- Não pode ser. Chamo a polícia se você não vender para mim.
- Assim sendo, leve essas três com casca e duas peladas, tá bom?
Nosso herói chega em casa contente, com as laranjas e um aparelho novinho:
- Mulher, agora vai. Trouxe as laranjas também. Veja como fica boa.
A mulher olha as duas laranjas descascadas, admira a perfeição do corte, tem certeza que nunca Cláudio fará igual. Ele começa sua exibição.
- Ai!, cortei o dedo, berra Cláudio deixando cair a laranja meio descascada, rubra de sangue.
Dia seguinte:
- Querido, está melhor? O dedo doeu?
- Tudo bem, atrapalhou um pouco com o teclado.
- Tenho uma surpresa para você!
- Não é meu aniversário.
- Bobinho, comprei para você esse superaparelho que vi na tevê, descasca frutas e legumes, inclusive laranjas, espreme, centrifuga, faz suco de melancia, morango, cenoura, beterraba, tem cinqüenta funções diferentes, trinta acessórios ....
- Funciona?
- Com certeza, vi na tevê!
José FRID
4 comentários:
Gostei... bem engraçado...!
L.
E verídico!
Frid
Pra laranja, não seria mais fácil uma boa faca, mesmo?
Pra todo o resto (batata, mandioquinha, cará, cenoura), eu uso um desses de
camelô. O meu está ótimo.
Ou o de laranja é algo específico que esta interiorana não conhece?
E.
Para laranja é um pouco diferente, mas o problema está no Cláudio, ou seja, é um problema parecido com o que acontece comumente em informática: FOC - falta de operador competente!!
Bom fim de semana de derreter!!
Frid
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