sexta-feira, 18 de março de 2011

Carnaval e paixão nacional




Quarta-feira de Cinzas. Outro carnaval nos anais da memória, donde, eventualmente, poderá sair um dia qualquer, resgatado por acordes de uma música carnavalesca, um samba-enredo cantarolado, confetes e serpentinas pelo chão, um anúncio de cerveja, comentários sobre a chuva, recordações de viagens, uma conversa de bar.


A coisa acontece assim, meio proustiana: formatura de uma sobrinha, salão lotado, discurso atrás de discurso, crianças entediadas a cerimônia toda, não entendendo nada. Que cruéis pais, avós, tios, trouxeram aquelas crianças? Algumas delas tentavam sair da pasmaceira correndo pelo salão, indo ao banheiro inúmeras vezes, subindo e descendo nas cadeiras, ou simplesmente berrando a plenos pulmões. A negra tortura infantil só terminou quando começaram a ser chamados os formandos para receberem seus diplomas. A cada nome mencionado, os familiares do ex-aluno batiam palmas, gritavam, apitavam, batucavam, exibiam faixas, um verdadeiro carnaval. E carnaval chama confetes e serpentinas, que eram lançados por morteiros de pressão, inclusive serpentinas metálicas iguais àquelas que mataram três num trio elétrico no interior de São Paulo. Os olhos das crianças brilharam e elas saíram colhendo do chão os restos carnavalescos, enchendo potes, sacos, bolsos, etc., todas extasiadas com o tesouro inesperado. Valeu agüentar aquela falação toda!


A visão daquela alegria infantil bastou para abstrair-me da cerimônia e transportar-me para antigos carnavais, nas matinês dos bailes dos clubes, eu pecorrucho, fantasiado de pirata, índio, tirolês, cowboy, a recolher rolos de serpentinas e confetes, para tristeza de meus pais, que tentavam incutir-me o autêntico espírito carnavalesco carioca. E desolação da empregada, passando o mês a recolher da sala, dos quartos e até da cozinha, os confetes das batalhas pós-carnavalescas com minha irmã.


Os registros deste carnaval que acabou de passar foram a chuva, para a gente do sudeste, o Kaddafi (Gaddafi, Kadhafi, como preferir) e suas bravatas, a Sandy como "devassa", os "filhos" do Toninho Cerezzo e do Edmundo (logo do animal!), o Roberto Carlos na Beija-Flor, etc. Em particular, um carnaval do eu-sozinho, com minha cachorrinha, meus discos e livros e nada mais. Ou melhor, cadelinha, livros, discos, internet banda larga e tevê a cabo com muitos canais de filmes, pois ninguém merece ver desfile pela televisão!


E como tem anúncio de cerveja no carnaval!! Na verdade, o verão todo, mas no carnaval é pior, parece que eles têm que vender toda a cerveja nesses quatro dias de folia, não pode sobrar na fábrica uma lata, uma garrafa da maldita! Neste ano, o mais simpático, para mim, foi o que trazia o Carlinhos Brown cantando um "cervejão". Achei que foi o mais resolvido, musicalmente falando, sem deixar de mostrar praia, sol, mulheres bonitas com poucas roupas, etc. A Ivete Sangalo dava uma palinha também no comercial, essa sim um mulherão! Um pitéu, como diria meu avô!


Essa enxurrada de anúncios cervejeiros, nesta época momesca, sempre me provoca a recordação de um carnaval dos anos noventa, já dominado pelos anúncios de cerveja em ritmo baiano, só que com a Daniela Mercury e sua paixão nacional. Antes de continuar, cabe registrar que ela, linda e gostosa naquela época, continua um piteuzinho, graças à genética generosa, aos exercícios físicos e aos cirurgiões plásticos, é claro.


O tal anúncio de cerveja, repetido em todos os intervalos comerciais de todas as estações, mostrava a cantora cercada de muitas bailarinas, todas de roupas muito curtas, dançando e cantando no ritmo da música, num local praiano, acho que no Farol da Barra, se não me falha a memória. Elas iam de um lado para o outro, subindo e descendo as mãos conforme o ritmo da música, apoiado em forte percussão, que terminava mais ou menos assim:


" ... Nesse calor você merece uma cerveja, nesse calor você merece uma Antártica, paixão nacional!"


Ela terminava a música com os braços e pernas abertas, fazendo um "xis", logo aparecendo a garrafa gelada e suada derramando o precioso líquido dourado numa tulipa. Eu, jogado no sofá, concordava com ela, "mereço!! mereço!!", mas minha voz não era ouvida. Só tosse, tosse, catarro, dor.


Eu tinha pego uma broncopneumonia, sabe-se lá como, e, às vésperas do carnaval, tinha sido posto em descanso absoluto e sob forte medicação. Viajar para a praia? Nem pensar. Beber? Nem sonhando! Fui embrenhar-me no sítio, fazendo não o circuito Barra-Ondina, mas o cama-sofá. Bebendo remédios, sopinhas, suquinhos, envolto no cobertor, quase um bebê. E a Daniela torturando-me todos aqueles dias, "vem dançar comigo, tome uma cerveja, você merece uma gelada, paixão nacional". Ela entrava com sua música-chiclete até nos meus sonhos, eu e ela num quiosque em Salvador, tomando umas geladas, as meninas bailando à minha frente, o sol, o mar .... acabava acordando suando frio como a garrafa de cerveja!


Contava os dias para o fim do tratamento, quando iria vingar-me tomando a cerveja do concorrente, aquela que desce redondo, ou mesmo a dos guerreiros que fracassaram na África do Sul. Convidar os amigos, acender o fogo, lotar a geladeira e ... "merecemos, merecemos mais uma rodada", cantando a marchinha carnavalesca "as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar, eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha, e bebo até me afogar, deixa as águas rolar!"


Ledo engano o meu: no retorno à médica, ela prolongou meu tratamento com mais remédios, mantendo a proibição do álcool não automotivo. Antes que ele terminasse, fui atacado por uma gastrite medicamentosa, ou seja, mais alguns meses sem a paixão nacional. O verão passou, o outono foi-se e eu sem poder molhar a garganta. Com isso, tomei uma raiva de Antártica .....


José FRID

4 comentários:

Anônimo disse...

Mto bom!



História real?





L.

Metamorfose Ambulante disse...

100 %, inclusive o sonho com a Daniela!

Anônimo disse...

Rapaz, não é que vc virou escritor.
Muito bom, parabens.

Grande abraço,

P.

Metamorfose Ambulante disse...

Escrivinhador apenas!