sexta-feira, 1 de abril de 2011

Segunda-feira barata


Segundona. Abro os olhos, maridão já foi trabalhar. Olho o relógio, é muito cedo para quem não trabalha em fábrica. Bocejo, corpo começa a despertar. Levanto tentando não acordar de toda. Espreguiço fazendo xixi. Relaxada, volto pra cama, tentando prolongar aquela sensação boa com que sonhava. Não tem jeito: acordei.

Água na chaleira, um restinho de pó, ainda tem. Estou em pé, ao lado da pia, olhando sem ver pela janela, pensando ou orando ou dormindo, sei lá. Com certeza esperando a chaleira apitar. Ela chega devagar pelo canto esquerdo, virando os 90º da borda da pedra, tateando, sentindo as vibrações. As seis pernas permitem-lhe transpor o obstáculo vertical com elegância, sem qualquer sinal de desequilíbrio ou indecisão. Agora está sobre o mármore branco. E ela escura. Será que me vê, sente? Preto no branco, não há como ignorá-la. Alguma atitude deve ser tomada. Por mim ou por ela. 

Lembro da Clarice: Era uma cara sem contorno. As antenas saíam dos bigodes dos lados da boca. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Melhor não pensar muito no assunto, G.H. endoidou, eu tenho que trabalhar. Indago mentalmente a Deus: Por que fizestes tão desprezível ser? (Pensando bem, ela, de uma espécie que está na terra há 300 milhões de anos, é que deveria inquirir a Deus: Porque criastes as mulheres, seus medos, seus gritos, suas sandálias e seus inseticidas?) (E Deus, veio antes ou depois das baratas?)

Enquanto reflito, filosofo, ela caminha devagar sem se sentir ameaçada. Tudo sabe, as antenas varrem o ar, o mármore, à busca de informações. Sente cada passo antes de dá-lo. Seu percurso, para mim errático, é puro planejamento estratégico. Eu me pergunto: será que ela sabe de mim? Ali, em pé, a observá-la, com um misto de nojo e curiosidade, afeto e repulsa?

Ela sabe de mim, aqui estática, porque sei que, ao meu menor movimento, ela correrá na direção traçada em busca de refúgio seguro, qual um Bin Laden. Que fazer? Jogar um chinelo desesperado no meio dos copos, pratos e panelas? Terá o mesmo sucesso dos mísseis caolhos americanos, muita destruição e pouco resultado. Não. Eu teria que ser certeira demais. Coisa impossível antes de um café bem forte, aquele cuja água está esquentando.
Ela caminha pela pia, passeia, estuda se vai descer para a cuba, desiste. (Que pena, bastaria abrir a torneira para jogá-la no ralo). E eu? E a coragem de bulir com ela?

Ela gira, voltando-se para o ponto inicial. Mas antes de lá chegar, dá uma paradinha no meio da trajetória, entre copos e pratos. Presto atenção, pode ser o meu momento de ação, se conseguir sair do meu torpor (não sou ninguém antes da primeira xícara de café matinal): se empina para cima com as patas de trás, e as asas para cima, e defeca! Deixa ali sua marca, o preto no branco, e sai normal, aliviada, deslizando mais leve pelo sedoso mármore ... minha pia, seu banheiro: essa safada realmente me ignora!!

Começo a gostar dela. Audaciosa, segura, serena, digna representante de espécie com milhões de anos de janela; e se não bastasse, ela fica mais bonita cagando: se eleva, se esguia no seu esforço, se espreguiça como eu nessa segundona. Será que ela passou uma noite boa como a minha? Comeu bem, certamente, minha casa deve ser apetitosa. Será que ela dorme de dia? Ela, indiferente a mim, passeia entre copos, pratos e panelas, talvez à procura de algo.

O apito da chaleira assusta-me, retirando-me dos devaneios. Num átimo retiro a chaleira do fogo e despejo a água pelando no preto do mármore branco: um rio fervente qual lava fumegante escorre em direção à cuba, ao ralo, carregando tudo à sua frente como um tsunami e esterilizando por onde passa: foi-se ela. Morta? Não sei. Dizem que as baratas sobreviveriam à uma explosão atômica, passeariam sobre nossos corpos radiativos. Na dúvida, abro a torneira e deixo jorrar água, quem sabe ela se afoga. (Quem sobrevive à radioatividade morre afogado?)

Encho a chaleira outra vez, ponho no fogo, já acordei com a tragédia, nem preciso mais do café. Começou o dia, uma segundona. Pego a esponja para lavar os utensílios inspecionados pela dita cuja. Noto, no meio deles, pequeno preto no branco. O seu dejeto não foi levado pela água. Examino com nojo: cocô? Não parece, muito certinho, rijo. Seria um ovo? Uma ooteca? Com um palito reviro a coisa: ooteca com certeza!

Ela cai no meu conceito: não é mais aquele ser audacioso, seguro, trezentos milhões de anos de praia, que defeca e se locomove para mim; não, apenas mais uma fêmea sujeitando-se às imposições da natureza, uma maternidade não planejada, ...

A chaleira apita e afasta de mim o espírito lispectoriano. Segundona, resto de pó, água fervente, o aroma exalado pela mistura traz lembranças de manhãs na fazenda, vovó e seus bolos, os pintinhos piando no terreiro, os gansos grasnam na porteira .... sai de mim literatura, tenho tanto que fazer! Segundona, tome posse desse corpo, alma, espírito, que hoje lhe pertencem!

José FRID sobre tema de M.F.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Dom Frid lispectoriano!

Só não sabia o que é ooteca...
A.

Metamorfose Ambulante disse...

Frid também é cultura!

Anônimo disse...

Olá, amigo!
Sonhar até faz bem, mas ficar sonhando em plena segundona aí não da pé, já fiz muito, e despertava dos pesadelos, ha,ha,ha,ha.
Legal.
M.

Anônimo disse...

Parabens! Bem legal!
F.