sexta-feira, 22 de julho de 2011

Crônica da morte anunciada


Acho fácil uma vaga para estacionar. Afinal é domingo, início da tarde e, mesmo estando próximo à Paulista, Peixoto Gomide com Barata Ribeiro, a rua está quase vazia. Apenas um bar aberto em cada lado da rua. Almoçam, bebem, esperam o jogo começar. Vou para o MASP ver uma exposição sobre as pessoas do mundo.

Noto um casal masculino descendo a rua de braços dados. O alto carrega um saco com as compras, o outro um jornal e revistas. Uma moça caminha a passos lentos, não sei se de cansaço da balada da madrugada ou se desfruta do sol caliente antes de enfurnar-se num cinema ou num barzinho com a turma. Um velho e seu cão fazem a ronda dos postes. Minha mulher interrompe:

- Você viu?
- O quê? O casal?  
- Não, lá.
- Onde?
- Na rua. Olhe logo!

Minha vista vai de um bar a outro, mas não consigo ver nada de interesse.

- Ali, no asfalto!

Dessa vez enxergo. Está no meio da rua, parece indeciso entre completar a travessia ou retornar para a calçada. Um dos cem milhões de residentes da cidade. Noto que ele se comporta de modo diferente. Deveria, naquela situação, exposto ao perigo e à vista de todos, correr para a calçada e desaparecer. Entretanto, ele caminha lento como a moça, alegre como o casal e trôpego como o idoso. Comeu muito, bebeu todas, passou a noite em claro?

Fico apreensivo. Os poucos motoristas da Peixoto Gomide conseguem enxergá-lo e desviar dele, mas logo surgirão os veículos da Barata Ribeiro, que só o perceberão depois de fazer a curva, bem em cima dele. Que faço? A apreensão vira angústia, o fim dele pode estar próximo. Atravesso e tento conduzi-lo para a calçada? Vou para o meio da rua desviar o tráfego? Penso mas não ajo. Nojo? Medo? É, ele pode não entender meu gesto e vir para cima de mim.

Ele cativou os brameiros dos dois botecos, que se condoem com a situação dele, comentam, especulam, mas, como eu, nada fazem. Ninguém quer se envolver. Está na mão de deus, diz um. Deus protege os bêbados, completa outro, após um gole da gelada. Um homem que desce a rua grita para os que estão no bar:

- Vocês viram? Vamos apostar na cor do carro que vai atropelá-lo?
- Não vale, só tem prata e preto.
- E no número de carros, contando de agora?
- Você é cruel! Ganhar dinheiro com a morte dele ...
- Tá com pena? Leva pra casa! Se morrer será um a menos nesta cidade lotada!
- Fica calmo, toma uma cerva aí!
- Tô calmo, calmíssimo. Aposto no oitavo carro a partir de agora!

Todos ali na esquina aguardam a morte anunciada. O semáforo muda e surge o primeiro automóvel vindo da Barata Ribeiro. Ele faz a curva bem aberta e evita a criatura no asfalto. Percebemos que, se ele se mantiver na faixa esquerda da Peixoto Gomide, os veículos não o atropelarão. Outro carro irrompe da rua transversal e consegue evitá-lo. A torcida grita "uuuuuu" como se fosse um gol perdido. Um terceiro automóvel faz a curva, um pouco fechada, e tira um fino da criatura. Um gaiato grita "olé!"

Não posso ficar ali assistindo sem agir. Não estou preparado para ter a epifania da Clarice Lispector em Copacabana. Puxo minha mulher pela mão e seguimos nosso destino, afinal tem seis bilhões de outros me esperando no MASP. Caminho alguns metros, mas não resisto, e olho para trás como a mulher de Ló. Quase viro sal: um automóvel alto acaba de passar por cima dele, que não se fere, pois ficou deitado entre as rodas. Coisa de cinema. Aperto o passo para não estar presente quando do desenlace. Uma curva, o hospital, a Paulista, o MASP lotado.

A exposição multimídia é deslumbrante, mostra quase seis mil pessoas, de mais de setenta países, falando sobre suas vidas, suas dificuldades e esperanças, etc. Acabo esquecendo daquele drama no asfalto. A maioria dos entrevistados é pobre, até porque a maioria do mundo é pobre. Quem escapa da pobreza mostra que luta muito para sobreviver com certa dignidade. Ricos só duas pessoas: uma mulher que disse que o marido era como se fosse uma arca de ouro para ela, e um homem que se considerava rico por ter muitos amigos. Serei rico?

Na sequência, a exposição exibe um filme sobre as dificuldades dos imigrantes em São Paulo. Volta a lembrança da morte anunciada lá na Peixoto Gomide. Seria ele um imigrante perdido na cidade grande? Agora um corpo estendido no chão? Por um instante a angústia dominou-me. Alguns instantes só, pois logo o sentimento foi alijado pelo meu estômago, que avisou ser quase seis horas e ele ainda estar vazio. Como Caetano cantou, só dá para filosofar em alemão.

Atendidas as demandas calóricas, retorno à fatídica rua, já sob os acordes do Fantástico escapando dos apartamentos. Passo pelo hospital, festivo, as pessoas gostam de adoecer à noite, para desespero dos plantonistas. Passo a curva, os bares estão fechados e a rua dorme. Será que ele sobreviveu? Procuro vestígios de sangue no asfalto, nas calçadas, ou mesmo um corpo estendido no chão ou na caçamba de entulho. Mesmo não sendo um CSI concluo, feliz, que ele escapou da triste sina. Uma alma caridosa o resgatou? Ou salvou-se com suas próprias patas? Very good! Entro no meu carro e vejo outra criatura descuidada atravessando a rua. Mas não é meu Jerry, meu Mickey, mas uma nojenta ratazana! Começo a contar mentalmente: um, dois, três .... afinal, existem dez ratos para cada paulistano!!


José FRID

Obs: leia aqui a epifania da Clarice Lispector, acá a letra da música do Caetano Veloso sobre filosofar em alemão, e aqui a canção do João Bosco sobre o corpo estendido no chão.

5 comentários:

Anônimo disse...

Show!

Parabéns!

Kraus

Anônimo disse...

Triste, mas muito boa.
PM

Anônimo disse...

Muito Boa!!

Daniele

Anônimo disse...

Muito boa!

Bom final de semana!

Anônimo disse...

O pior é que é verdade.

Margarida