Num dia desses, estava almoçando num restaurante vegetariano onde quem come mais de 300 gramas ganha uma fichinha plástica colorida para trocar por uma sobremesa. Quem não ganha sobremesa? Só alguma magrelinha enfastiada ou um obeso desiludido por não achar um bom bife sangrento.
Enquanto aguardava a garçonete, eu brincava com uma ficha amarela (existem também azuis, vermelhas, verdes e brancas, todas com o mesmo valor: melancia, melão, mamão, pudim ou sagu), o que me trouxe recordações de garoto novo. Minha "madeleine" foi a ficha, mas prometo escrever um pouco menos que Proust e seguir com Lupiscínio: "...como a gente voa quando começa a pensar...". Assim, logo me vi num ônibus a caminho da escola, com uma ficha amarela na mão, ansioso, pensando num jeito de surrupiá-la para minha coleção.
As fichas eram excelentes para serem colecionadas: diversas cores, formatos variados (redondas, quadradas, com furo, triangulares, hexagonais, etc.), muitas empresa diferentes, etc. Havia até bolsa de trocas e de vendas de fichas, pois nem todos podiam pegar todos os ônibus da cidade, do estado, do Brasil. Pessoas mais abonadas chegavam a pagar duas passagens só para embolsar uma ficha. Eu, sem dinheiro sobrando, precisava criar inventivas maneiras de descer do ônibus sem devolver a fichinha, nem levar bronca do motorista.
Não havia catraca no ônibus. O cobrador, naquele tempo, era peça fundamental para as finanças da companhia de ônibus, pois ia de banco em banco cobrando os passageiros e entregando as fichas plásticas correspondentes aos percursos pagos. Na minha linha existiam três tipos: azul até o centro, verde do centro ao final, amarela para a passagem inteira. Muitos tentavam enrolar o cobrador, evitando-o até chegar ao centro, para pagar meia ao invés da passagem inteira. No meu caso, para pegar ficha de outra cor.
Na hora de descer tínhamos que depositar a ficha numa caixa transparente com boca estreita, para o motorista conferir se a cor dela estava compatível com o ponto de descida. O grande desafio: descer do ônibus sem devolver. Como burlar o motorista? O modo mais simples era descer correndo as escadas do ônibus assim que ele abrisse as portas. Riscos: tropeçar e cair; a porta fechar; alguém subir. Paradas em que muitas pessoas desciam eram ótimas, dava para aproveitar a confusão e enganar o motorista. Outra solução, em ônibus cheio, era ficar em pé bem na porta da frente para confundir o motorista: devolveu ou não a ficha?
Vejo-me, agora, em pé, bem em frente ao motorista, ansioso, ficha entre dedos, escondendo o nervosismo, esperando a hora certa de dar o bote, decidindo que estratégia usar ...
- Melancia, mamão ou sagu?
A garçonete me trás de volta ao restaurante, antes que eu descubra se naquele dia tinha conseguido aumentar minha coleção ou tomado bronca do motorista. Nem dei gorjeta para ela!
Caminhando depois do vegetariano almoço, passo por um ponto de ônibus e vejo passageiros desembarcando tranquilamente pela porta de trás do veículo. Sorrio. Antigamente, isso significava que a pessoa não pagara a passagem.. Novamente no passado (será que é alguma coisa que comi?), agora estou num ônibus voltando da praia com meus dois primos. O mais certinho já passou pela catraca.
Nesses novos tempos, os ônibus já têm roleta e as fichas foram substituídas por tickets de papel, que controlam os passageiros e os cobradores. O meu desafio agora é outro: viajar de graça. Necessidade? Não, diversão, emoção. O truque é ficar sentado (ônibus vazio) ou em pé (cheio) próximo à porta traseira, de olho no cobrador e em quem entra no ônibus, esperando a oportunidade para dar o bote. Numa distração do cobrador, voar pelos degraus e correr pela rua no sentido contrário ao do veículo. Riscos: a porta do ônibus fechar, o cobrador segurar a gente pelo pescoço, derrubar quem estiver entrando, cobrador correr atrás de nós pelas ruas, alguém gritar pega ladrão e a turba ir atrás, a polícia aparecer, ...
Riscos que só acentuam a vontade de praticar o ato, adrenalina a mil. Lá estou sentado bem ao lado da porta traseira, meu primo ao meu lado. Expectativa. Ou descem os dois ou o que ficar poderá ser obrigado a pagar a passagem do outro. Pode rolar até uns cascudos. Não dá para saber exatamente quando as condições ideais vão aparecer. Assim, dois pontos antes daquele que seria o nosso já estamos ligados. A primeira oportunidade deve ser aproveitada, o resto do trajeto faremos a pé saboreando a imensa ousadia e bebendo refrigerantes pagos com o dinheiro das passagens. Só não poderemos comentar o ocorrido na casa do meu tio, pois ele virá com a mesma ladainha, que aquilo é errado e temos que pagar, pois gastamos um pedacinho do ônibus, salários, combustível, coisas acima do entendimento dos nossos quatorze anos. Nessa idade só conta a adrenalina!!
Não é a minha primeira vez que tento dar o golpe, já tenho certo prática no assunto, aprendi com o mestre Paulinho, o terror dos cobradores. Na maioria das vezes deu certo, mas já colecionei alguns fracassos, o que torna essencial ter-se o dinheiro da passagem. Na ausência dele, melhor pedir carona para o motorista contando uma estória triste. Quem no Rio ainda não foi assaltado?
Nada nos atrapalha: estamos descalços, só de sunga e camiseta justa. Eu tenho uma desvantagem em relação ao meu primo: óculos! Se caírem, além dos castigos dos pais, não enxergarei o caminho, os obstáculos, a polícia .... Tensão máxima agora. No segundo ponto, o ônibus não parou, mas agora está parando sem que alguém tenha acionado a campainha, sinal de que passageiros vão entrar, a porta traseira vai ter que abrir e nós ....
- Moço, onde é a Vinte e Cinco de Março?
Volto abruptamente para 2011. Ensino, propositalmente, o caminho errado, como punição pelo fim dos meus devaneios. Com tanta interrupção, não vou conseguir escrever meu "Em busca do tempo perdido". Bem fazia Proust trancando-se em casa!
8 comentários:
As crônicas estão cada dia melhores e esta em particular foi deveras saborosa. As fichinhas...
Abraços
Armando
Reconheceu você naquele que passou a roleta? E seu pai falando do desgaste do ônibus?
No feriado de 15 de novembro você estará no Rio? Quero ouvir a estória da prancha que você encontrou no riacho! Pode dar crônica!!
Um abraço
Muito bom!
Margarida
Urra, FRID !
Restaurante vegetariano é bastante saudável !
Abraços, GALVÃO.
Quando não tem agrotóxicos em demasia ...
Fichas coloridas? Seria um fenômeno carioca?
Tá certo que temos uma diferençazinha de idade, mas devem ser poucos aninhos.
Pelo que eu lembro, e pelo que minha mãe conta, aqui em São Paulo não era assim não.
Agora me ocorreu um pensamento: será que algum carioca abonado da sua adolescência ficou colecionando as fichas, e ai acabou abrindo um restaurante vegetariano em Sampa só pra poder usar as fichas?
Bete
Pela minha pesquisa, não é fenômeno carioca. Achei um cara que tem 13 mil fichas de ônibus de 933 empresas de 19 estado brasileiros! Outro disse que tinha ficha nos ônibus de Sorocaba até o ano 2000!
Pela nossa diferença de idade, não vou perguntar a idade a uma dama, e pelo fato que comecei a andar de ônibus muito cedo, podemos não ter a mesma experiência "fichística". Mas sua mãe já está abusando!!! Pergunte a ela se os ônibus tinham preço único ou preço por trecho percorrido. Se for preço único não teria fichas, só a roleta.
Quanto às fichas do vegetariano, elas não são de ônibus, pois não têm o nome da companhia. Tem cara de ser de quermesse, festa de igreja: azul vale um suco, vermelha, cachorro-quente, etc.
Para mim, o mais curioso foi como uma fichinha de sobremesa foi me colocar dentro de ônibus fazendo estrepolias!
Só Proust ou Lupiscínio explicam!!
Ótima semana quebrada!
FRID
Cara, vc é gênio?
Márcia
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