Fui dormir por volta das onze da noite. Como de costume, liguei a televisão e procurei um filme para provocar o sono. Abaixei o som, arrumei meus dois travesseiros, alteando minha cabeça, melhorando a visão da tevê para facilitar a leitura das legendas antes de eu sucumbir a Morfeu. Estava de pijama longo, cinza-escuro, sob um fino cobertor marrom-escuro. Fui adormecendo e, com frio, coloquei as mãos por dentro da calça, ao longo do corpo. (Atenção maldosos: mãos nos lados do corpo!)
Adormeço. Sonho. E no sonho vejo-me deitado na cama, meu corpo iluminado por uma suave luz. Minha cabeça, que se destaca no escuro, descansa no travesseiro, ligeiramente inclinada para a frente. Os braços estão retos ao longo do corpo, as mãos singelamente apoiadas no abdômen. Silêncio total. Ambiente de paz, calmaria. Meus dois "eus", o que vê e o que está deitado, estão tranqüilos, serenos. Um "eu" dorme e, talvez, até sonhe. O outro "eu" o contempla e, depois de algum tempo, conclui que o "eu" adormecido parece um morto: quieto, deitado de bruços, corpo alinhado, todo de preto, sob uma luz mortiça. Morto, mas não num caixão. A imagem que vê parece-lhe familiar, O pensamento voa como um morcego, captando reverberações, e se ilumina: O corpo embalsamado de Lênin! O "eu" vidente regozija-se com a lembrança da múmia do líder soviético no mausoléu da Praça Vermelha. Um morto fora do caixão. Recorda-se vagamente de que leu que as mãos de Lênin, uma espalmada e outra semi-aberta, estariam doentes, ou melhor, deterioradas. O "eu" que dorme toma consciência das mãos russas, mas não sente as suas próprias. Doentes? A múmia de Lênin, meu corpo, as mãos podres do líder, minhas mãos insensíveis, o mausoléu, meu quarto, morte, morte – meus dois "eus" se fundem e acordo desesperado!
Abro os olhos, está escuro, reconheço meu quarto pela lâmpada do stand-by da televisão. Sinto meus punhos forçados pelo elástico do pijama. Retiro as mãos dormentes e movimento os dedos. Há sangue nestas mãos, elas renascem. Mexo as pernas, viro-me de lado, morto não estou. Ainda estou com sono, mas temo dormir e sonhar com a múmia das mãos podres. Como Lênin, ou melhor, sua múmia, entrara no meu sonho? O que significaria eu sonhar em me ver dormindo? Saí do meu corpo? Viagem astral? Por que a múmia de Lênin? Minhas mãos dormentes motivaram sonho com as mãos doentes do Lênin? São tantas questões que perco o sono, temeroso em topar com a múmia soviética. Insone, perambulo como um fantasma pela casa adormecida, quem sabe o de Trosky, que Lênin mandou matar no México. Acordado, não me recordo de ter visto a imagem da múmia de Lênin, face e mãos sobre corpo negro. Vasculho a internet e acho a foto do mausoléu, exatamente como sonhei. A memória é engraçada, esquece coisas que queremos recordar e guarda informações sem nenhuma relevância aparente.
Shakespeare escreveu que "somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos". Nietzche disse que "nada é tão nosso quanto os nossos sonhos". Se o sonho era meu, como o criei? Para quê? Não sou marxista-leninista, nem tenho especial apreço por soviéticos e/ou comunistas. Dos russos gosto, principalmente, das obras de Dostoievisk, Tolstoi, Tchekov, Gogol, Pushkin, de poucos poemas de Maiakovisk, alguns cartazes da revolução russa e das cúpulas "carnavalescas" da igreja de São Basílio. Seria influência de algum filme que assist.ira dormindo? Para evocar Lênin poderia ser "Reds (10 dias que abalaram o mundo)", "Doutor Givago", "Encouraçado Potenkin", "Frida", "Budapeste", "Adeus, Lênin" .
Acordado, meu espírito racional foi procurar as respostas nos possíveis significados do sonho. (Procurar significado para sonho é ser racional? Digamos que é o racional possível depois de acordar de um pesadelo na alta madrugada) Achei uma frase de Freud: "os sonhos não seriam produtos do acaso, mas estariam associados a pensamentos e problemas conscientes". Ele apontava duas fontes para eles: uma relativa ao mundo exterior e a outra relativa ao material interno guardado na memória. Aguçado pelas palavras do mestre, fui atrás das quatro coisas que tinham chamado a minha atenção no sonho. A primeira foi sonhar em me ver dormindo: "sonhar que está dormindo significa ilusão, que pode estar relacionada a fuga de um problema que você esteja passando na vida real". Não ajudou, quem não estaria passando por problemas na vida de hoje? Segui para o segundo aspecto e o mais exótico: sonhar com Lênin. Só achei isso: "quem sonha com alguém que lhe é conhecido, poderá vê-lo ou ouvir notícias dessa pessoa". Certamente Lênin é meu conhecido. Ver não posso mais vê-lo, só viajando para Moscou visitar a múmia. Ouvir notícias? Da múmia e da sua história. Ler seus livros? Continuava complicado. Seria hora de procurar um analista, um psicólogo? Terceiro item: sonhar com mãos. "Sonhar com suas mãos representa a relação entre você, as pessoas que te rodeiam e o mundo. Elas simbolizam a comunicação". Mãos podres seriam sinais de dificuldade em relacionar-me com o mundo? Uma boa hipótese, tem gente que não me entende. Fui mais a fundo: "Um sonho com as mãos deve relacionar-se com o trabalho. O que faças com as mãos deverás relacioná-lo com temas profissionais ou trabalhistas." Trabalho ou comunicação? Comunicação no trabalho? Trabalho de comunicação? Só Freud explica! Como ele não estava por perto, confuso, fui navegar por outra praia: sonhar com múmia comunista o que significaria? Procurei até o sol raiar e nada. Parece que ninguém sonha com comunista (Será que comunista não deita em divãs de analistas e psicólogos?) O sol encharcou minha janela, indicando que era hora de trabalhar. Saindo de casa, mal pus os pés na calçada, depois de desejar um bom dia para o porteiro, tive uma epifania: Lênin convocava-me para ir às ruas agitar as massas! Eu com bandeira vermelha, marchando pela Paulista, à frente do povo revolucionário!
Este sonho não me representa!
José FRID
9 comentários:
Pelo que eu acabo de ler.
Isso tem haver com vidas passadas.
Me parece que você viveu está época.
Abraços
Oséas
Quem sabe, não???
Sinceramente : Genial !
Valeu cada minuto da leitura, maior que a usual, diga-se de passagem.
Parabéns. Abração.
Ricardo B.
Gostei que você tenha gostado! Cada tema pede um tamanho de texto, apesar de eu cortar, cortar, cortar.....
Boa semana!
É bom ler seus escritos,sempre fluentes e intrigantes.
obrigada
bjs
Regina H.
Olá!
Qr dizer q vc se disfarçou de manifestante pra ñ ser reconhecido. Q coisa feia! Falando sério, até ñ discordo de manifestação, embora pra q participe de uma, só se concordo totalmente. Mas estas q andam fazendo, a imensa maioria acabou em quebra-quebra e até saques. Assim se perde a razão.
Mas, esquecendo disso, diga uma coisa, mas tem alguma parte do sonho q é similar à sua realidade, né?
Abç e tenha inspirada semana.
Z...
Não sei se tem alguma realidade no sonho. Só dando para um especialista analisar! O sonho foi a maior surpresa, tive realmente pesadelo e acordei com medo.
Grande abraço!
Bom dia Don Frid, estou hoje voltando de greve...
Muito bom mais uma vez!
A dupla caipira não é Trotky e Maiakovski? rsrsrsrs...
André
Nooossa, que coincidência!!! So li seu texto hoje (eu, novamente com os e-mails bem atrasados). E hoje a noite, também tive um sonho bem estranho. Sonhei que a prima estava sem os braços (eram dois cotocos no lugar). Pensei agora se o seu Lenin tem alguma coisa a ver com minha prima. So Freud mesmo. E, como ele não esta por aqui...
Ótimo texto!
Boa semana
Beth
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