terça-feira, 10 de setembro de 2013

O relato do jardineiro-chefe - Tchekhov



Na estufa de plantas dos condes N., tinha lugar uma venda de flores. Havia poucos compradores; eu, meu vizinho-proprietário rural e um jovem comerciante que trabalhava com madeira. Enquanto os trabalhadores levavam as nossas belíssimas compras e acondicionavam-nas em carroças, nós ficamos sentados à entrada da estufa, conversando sobre uma coisa e outra. Numa quente manhã de abril, ficar sentado no jardim, ouvir os passarinhos e ver como as flores trazidas para a liberdade deliciam-se ao sol é muitíssimo agradável.

Supervisionava o acondicionamento das flores o próprio jardineiro, Mikhail Kárlovich, respeitável ancião de rosto cheio e escanhoado, de colete de peles, sem casaco. Ele permanecia calado o tempo todo, mas prestava atenção à nossa conversa e esperava que, quem sabe, nós disséssemos algo de novo. Era um homem inteligente, muito bondoso e respeitado por todos. Não se sabe por quê, todo mundo o considerava um alemão, embora por parte do pai ele fosse sueco, pela mãe, russo, e freqüentasse a igreja ortodoxa. Ele sabia russo, sueco e alemão, lia muito nesses idiomas, e não era possível causar-lhe prazer maior do que dar-lhe algum livro novo para ler, ou conversar com ele, por exemplo, sobre Ibsen. 

Ele tinha fraquezas, mas eram inocentes; assim, ele intitulava-se jardineiro-chefe, embora não houvesse chefiados; a expressão do seu rosto era extraordinariamente grave e altiva: ele não admitia contradição e gostava de ser ouvido com seriedade e atenção.

- Este mocinho aqui, apresento, é um patife de marca – disse o meu vizinho, apontando para um trabalhador de rosto moreno de cigano, que passava por nós sobre uma pipa de água. – Na semana passada, ele foi julgado na cidade por assalto e foi absolvido. Foi considerado doente mental e, no entanto, olhe só para a sua carantonha, ele é mais que sadio. Nos últimos tempos, na Rússia andam inocentando com excessiva freqüência os malfeitores, justificando tudo como estados mórbidos e afetivos, e no entanto essas sentenças absolutórias representam evidente indulgência e conivência e não conduzem a nada de bom. Elas desmoralizam as massas; o senso de justiça embotou-se em todos, já que se acostumaram a ver o vício impune; e, sabe, do nosso tempo pode-se tranqüilamente dizer com as palavras de Shakespeare: " No nosso século perverso e devasso, até a virtude tem de pedir perdão ao vício".

- Isto está certo, está certo – concordou o comerciante. – Por causa das absolvições nos tribunais, os assassinatos e os incêndios criminosos aumentaram muito. Pode perguntar aos mujiques. 

O jardineiro Mikhail Kárlovich voltou-se para nós e disse:

- Quanto a mim, meus senhores, eu sempre saúdo com entusiasmo as sentenças absolutórias. Eu não temo pela moral e pela justiça, quando dizem "inocente", mas, pelo contrário, sinto satisfação. Mesmo quando a minha consciência me diz que, absolvendo um criminoso, os jurados cometeram um erro, mesmo então eu rejubilo-me. Julguem por si mesmos, senhores: se os juízes e os jurados acreditam mais no "ser humano" do que nas testemunhas, nas provas materiais e nos discursos, será que essa "fé no ser humano" não está de per si acima de quaisquer considerações cotidianas? Essa fé só é acessível àqueles poucos que compreendem e sentem o Cristo.

- Um bom pensamento – disse eu.

- Mas não é um pensamento novo. Lembro-me, já faz muito tempo, eu até ouvi uma lenda sobre esse tema. Uma lenda muito simpática – disse o jardineiro e sorriu. – Quem ma contou foi a minha falecida avó, mãe do meu pai, excelente velha. Contou em sueco, em russo não ficará tão bonito, tão clássico.

Mas nós lhe pedimos que a contasse, sem incomodar-se com a crueza do idioma russo. Ele, muito satisfeito, acendeu lentamente o seu cachimbinho, lançou um olhar enfezado para os trabalhadores e começou:

- Numa pequena cidade, instalou-se um senhor de idade, solitário e feio, de nome Tomson ou Wilson, mas isto não importa. O sobrenome não interessa. A sua profissão era bem nobre: ele curava gente. Estava sempre taciturno, e era pouco sociável, e só falava quando o exigia a profissão. Ele não visitava ninguém, não passava nas suas relações sociais além de um cumprimento silencioso e vivia modestamente, como um monge. Acontece que ele era um sábio, e naquele tempo os sábios não eram como as outras pessoas. Eles passavam dias e noites em contemplação, leitura de livros e cura de moléstias e encaravam tudo o mais como vulgaridade, e não tinham tempo para palavras supérfluas. Os moradores da cidade compreendiam isso perfeitamente e procuravam não aborrecê-lo com as suas visitas e tagarelice oca. Estavam muito felizes porque, Deus, finalmente, lhes enviara um homem que sabia curar doenças, e orgulhavam-se de que na sua cidade vivesse um homem tão extraordinário.

- Ele sabe tudo – comentavam entre si.

Mas isso não era suficiente. Era preciso dizer: "Ele ama a todos!" No peito desse homem sábio palpitava um maravilhoso coração angelical. Como quer que fosse, afinal, os moradores da cidade eram-lhe estranhos, não eram parentes, mas ele os amava como se fossem seus filhos e não poupava por eles nem a sua própria vida. Ele mesmo tísico, tossia, mas quando o chamavam para ver um doente, ele esquecia o seu próprio mal e, arquejando, subia montanhas, por mais altas que fossem. Ele não ligava para calor ou frio, desprezava fome e sede. Não aceitava dinheiro e, coisa estranha, quando perdia um paciente para a morte, ele seguia o caixão junto com os parentes e chorava.

E logo ele tornou-se tão indispensável para a cidade, que os moradores espantavam-se ao pensar como é que antes conseguiam passar sem esse homem. Sua gratidão não conhecia limites. Adultos e crianças, bons e maus, honestos e malandros, em suma, todos o respeitavam e reconheciam o seu valor. Na cidadezinha e nos arredores não havia uma só pessoa que se permitisse, não só fazer-lhe algo desagradável, mas sequer pensar numa coisa dessas. Saindo de sua casa, ele nunca trancava portas ou janelas, em plena confiança de que não existia ladrão que se atrevesse a prejudicá-lo. Muitas vezes ele precisava, por dever de médico, passar por grandes estradas, por florestas e montanhas, onde vagavam em quantidade vagabundos esfomeados, mas ele se sentia totalmente em segurança. Certa noite ele voltava da visita a um doente e foi atacado na floresta, por bandidos, os quais, reconhecendo-o, tiraram respeitosamente os chapéus diante dele e perguntaram-lhe se não queria comer alguma coisa. Quando ele disse que estava alimentado, eles lhe deram uma capa quente e acompanharam-no até a cidade, felizes porque o destino lhes oferecera uma oportunidade de agradecer de alguma forma a esse homem generoso. Bem adiante, está claro, a vovó contava que até os cavalos, as vacas e os cachorros conheciam-no e, ao encontrá-lo, demonstravam sua alegria. 

E esse homem que, aparentemente, graças à sua santidade, isolou-se de todo mal, de quem até os loucos furiosos e os bandidos eram considerados amigos, numa certa manhã foi encontrado assassinado. Ensangüentado, de crânio quebrado, ele jazia num barranco, e o seu rosto lívido expressava surpresa. Sim, não era terror mas surpresa que se congelara no seu rosto, quando ele viu diante de si o assassino. Podeis agora imaginar a dor que dominou os habitantes da cidade e dos arredores. Todos, em desespero, sem poder acreditar nos próprios olhos, perguntavam-se: quem podia ter matado esse homem? Os juízes que conduziam as investigações e examinaram o cadáver do médico disseram o seguinte: "Aqui temos todos os sinais de um assassinato, mas em vista do fato de que não existe no mundo uma pessoa que fosse capaz de matar o nosso doutor, a conclusão é que não houve assassinato, e a coincidência dos sinais explica-se simplesmente por mera coincidência. Deve-se supor que o doutor, na escuridão, caiu por si mesmo no barranco e feriu-se até a morte".

Com essa opinião concordou a cidade inteira. O doutor foi sepultado e já ninguém falava da morte violenta. A existência de uma pessoa de baixeza e perversidade suficientes para assassinar o doutor parecia inadmissível. Pois até a vileza tem os seus limites, não é mesmo?

Mas, de repente, imaginem só, o acaso conduziu até o assassino. Foi visto um vadio, já muitas vezes processado, conhecido por sua vida devassa, bebia numa taverna, pagando com a tabaqueira e o relógio que pertenceram ao doutor. Quando o interrogaram, ele atrapalhou-se e disse qualquer mentira evidente. Deram busca na sua moradia e encontraram na cama uma camisa de mangas ensangüentadas e uma lanceta de médico de cabo de ouro. Que outras provas eram necessárias? O bandido foi posto na cadeia. Os moradores da cidade indignaram-se e ao mesmo tempo diziam:

- Inacreditável! Não é possível! Cuidado para não haver engano; pois não acontece que as provas não digam a verdade?

No julgamento, o assassino negava obstinadamente a sua culpa. Tudo falava contra ele, e convencer-se da sua culpabilidade era tão fácil, como do fato de que esta terra é negra, mas os próprios juízes também enlouqueceram: eles ponderavam cada prova dez vezes, olhavam desconfiados para as testemunhas, enrubesciam, bebiam água... Começaram o julgamento de manhã cedo e terminaram só à noite.

- Acusado! – dirigiu-se o magistrado principal ao assassino. – O tribunal te reconhece culpado do assassinato do doutor tal e tal e te condena a...

O primeiro magistrado queria dizer "à pena de morte", mas deixou cair das mãos a folha de papel, na qual estava escrita a condenação, enxugou o suor frio e exclamou:

- Não! Se estou julgando errado, que Deus me castigue, mas eu juro, ele não é culpado! Não admito o pensamento de que se possa encontrar um homem que se atrevesse a assassinar o nosso amigo doutor! Um ser humano não é capaz de cair tão fundo!

- Sim, não existe semelhante ser humano – concordaram os outros juízes.

- Não! – ecoou a multidão. – Soltai-o!

O assassino foi solto e saiu livre, e nem uma só alma reprovou os juízes por falta de justiça. E Deus, dizia a minha avó, por essa fé no ser humano, perdoou os pecados de todos os moradores da cidadezinha. Ele se alegra, quando crêem que o homem é a Sua imagem e semelhança, e se entristece quando, esquecendo a dignidade humana, julgam os seres humanos pior que se fossem cães.

Que a sentença da absolvição traga prejuízo aos habitantes da cidadezinha, mas em compensação julguem por si que influência benéfica teve sobre eles essa fé no ente humano, uma fé que, é claro, não permanecerá morta: ela educa em nós os sentimentos generosos e sempre estimula a amar e a respeitar cada ser humano. Cada um! E isto é importante.

Mikhail Kárlovich terminou. Meu vizinho quis retrucar alguma coisa, mas o jardineiro-chefe fez um gesto, significando que ele não gosta de contradição, afastou-se a seguir para junto das carroças e, com expressão grave no rosto, continuou a se ocupar do carregamento.


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