quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Pequenas loucuras são necessárias


"Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós pequenas loucuras."  

Marcel Proust
  
Avenida Paulista, 19 horas, noite fria, garoando. Nesta situação difícil para moradores de rua, a marquise do Hospital Santa Catarina é um Oasis muito disputado. Ela é ampla, iluminada e dá para uma porta não utilizada. O fluxo de pedestres é grande, direcionado pela banca de jornais e pelas floreiras. O cidadão (ou a cidadã) pode ficar ao abrigo das intempéries e esmolar com tranquilidade e segurança. Ou simplesmente descansar da faina do dia, esperando dar a hora da janta, isto é, lá para dez, onze horas, quando os bares e restaurantes da região liberam as sobras de comida. 

Duas pessoas ocupam o local, um em cada ponta da marquise. No meio, há espaço, com conforto e individualidade, para pelo menos mais dois deserdados da sorte. Uma mulher de idade indefinida, que está na ponta mais perto da esquina com a rua transversal, acomoda-se entre sacos e sobre algo que lembra um cobertor. Ela está trabalhando, face sofrida, estica a mão e implora ajuda. Na outra extremidade, um homem jovem fez uma pequena paliçada com caixas de papelão com as abas abertas. No que ficou parecendo um ninho, ele colocou um colchão. Deitado, entre cobertas, lê, com gosto e em voz alta, uma revista. Enquanto ela trabalha, ele parece esperar pela hora da janta informando-se das novidades do Brasil e do mundo.

Os passantes apressados, ocupados ou distraídos, têm dificuldade em escutá-lo, pois o trânsito a essa hora é infernal. E a correria da volta à casa, ida à escola, do horário do cinema ou do encontro, impede que identifiquem a revista que lê. Eu, com todo tempo do mundo, flanando pela Paulista como Baudelaire e leitor voraz, já desde a esquina sou atraído pela figura do jovem leitor. Afrouxo meu passo, foco no ninho e percebo que ele se sente em casa, nós somos os intrusos. A iluminação da marquise é ótima, permite uma boa leitura. Desvio da senhora mendicante e, curioso, tento ver qual a revista que o cidadão lê. Capa colorida, brilhante, grande formato, talvez uma Caras, uma Bravo antiga, uma Marie Clarie? Chego mais perto e constato que é uma ... Dafiti! Surpreso, prossigo até a banca de jornais, especulando que revista seria aquela. Dafiti, para mim, é um site de venda de calçados, que alguém próximo, de quem não vou dizer o nome, comprou seis pares de sapatos de uma só vez.

Curiosidade acerbada, entro no site da Dafiti pelo smartfone para verificar se a loja publica revista. Depois de vários cliques – parece que o administrador do site não quer que o cliente ache a revista – encontro a DAFITI MAG. Folheio virtualmente e constato que ela tem "Expediente", Editor, responsável pela circulação e gráfica impressora! Logo, tem existência física e uma delas está na mão daquele sem-teto. A revista tem muitos anúncios, anúncios, anúncios: sapatos, bolsas, roupas, óculos, bijuterias e até artigos para casa. Uma matéria com a Isabelli Fontana linda, fundo vermelho, lingeries pretas, um cavalo branco... fotos de deixar louco pedinte paulistano! Seriam as curvas da moça que ele admirava embasbacado?

Como o caso merecia uma investigação antropológica, retorno devagar observando o desvalido leitor. Agora observo as páginas abertas, que ele folheia para frente e para trás. Ele não me vê, entretido com sua atividade intelectual. Ele passa pela Isabelli mas não se demora mais que em outras páginas. Vai e volta, mas sempre para na foto da modelo com o cavalo. Chego mais perto até o ponto que posso escutá-lo sem constrangê-lo com minha presença – norma básica de pesquisa social. O trânsito angustiante atrapalha a recepção de suas palavras, mas não posso aproximar-me mais. Tem horas que parece filme mudo: ele fala, gesticula, mas não entendo nada, faltam as telas intermediárias com as legendas. Quando estou prestes a desistir da pesquisa, o semáforo da Paulista fecha e faz-se o silêncio: o homem conta uma história,  ele é o príncipe, a modelo é a princesa e os dois viajam no cavalo branco por muitos lugares, várias festas, cada uma delas com seus trajes apropriados, que ele combina escolhendo entre as diversas sugestões da revista!  

Paulista, 19 horas, frio, fome, sem teto, situação insuportável? Não para quem tem imaginação, que se abstrai da realidade como Proust.



José FRID

14 comentários:

Anônimo disse...

Eu sou normal!

“Num mundo de loucos, apenas os loucos são sãos.” Akira Kurosawa

"A loucura é o sonho de uma única pessoa. A razão, é sem dúvida, a loucura de todos." André Suarés

"Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra." Friedrich Nietzsche

"A única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum." Millôr Fernandes

Ayrton

Metamorfose Ambulante disse...

Normal? Acho que estamos na imensa maioria de que fala Millôr!

Bom fim de semana com um pouquinho de loucuras!

Anônimo disse...

Parabéns!

Pompeo

Anônimo disse...

Maravilha!

Regina H.

Anônimo disse...

linda crônica, obrigado.

abraços,

ervin

Anônimo disse...

Muito bom

Oscar I.

Anônimo disse...

Você é sádico,estou morrendo de curiosidade de saber quem é a compradora voraz,COMPRADORA, tenho certeza que é mulher, mais uma noite em claro, não se faz isso com alguém tão ansioso.

Helena.

Metamorfose Ambulante disse...

É uma sobrinha tresloucada!

Anônimo disse...

Bem bacana o texto
Obrigada Frid
Abs

Clara

Anônimo disse...

Muito bom
Abraço

Eduardo G.C

Anônimo disse...

Lindo texto!

Joanna

Anônimo disse...

Sensacional, Frid!!!! A cena do sem teto e a sua aguçada percepção. Mas, ficou a dúvida: qual era o trabalho que desenvolvia a mulher???

Abração.

Lucy

Metamorfose Ambulante disse...

Pedia esmola, ué! Convencer o pessoal soltar umas moedas não é pra qualquer um, dá um trabalhão!

Grande abraço!

Anônimo disse...

Vc não existe....rsrsrsrs.....

Abç

Lucy