sábado, 26 de julho de 2014

Quase juízo final


Meu errante não fazer nada vive e se solta pela variedade da noite.
A noite é uma festa longa e solitária.
Em meu coração secreto eu me justifico e celebro.
Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo.
Cantei o eterno: a clara lua volvedora e as faces que o amor enseja.
Comemorarei com versos a cidade que me cerca e os arrabaldes que se apartam.
Disse assombro onde outros dizem apenas hábito.
Diante da canção dos tíbios, acendi minha voz em poentes.
Exaltei e cantei os antepassados de meu sangue e os antepassados de meus sonhos.
Fui e sou.
Travei com palavras firmes meu sentimento que pode ter se dissipado em ternura.
A lembrança de uma antiga vileza volta a meu coração.
Como o cavalo morto que a maré inflige à praia, volta a meu coração.
Ainda estão a meu lado, no entanto, as ruas e a lua.
A água continua sendo doce em minha boca e as estrofes não me negam sua graça.
Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-me se essa grande lua de minha solidão me perdoa?


Jorge Luis Borges in "Lua defronte", 1925, Primeira Poesia, Companhia das Letras, 2008, tradução de Josely Vianna Baptista

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