quinta-feira, 3 de março de 2016

Amor até o fim...

Ela para de se debater e olho para o relógio branco da cabeceira: os ponteiros dourados marcam 23 e 17. Quanto tempo ficamos assim? Ouço uma clássica tempestade de primavera despencando: raios, trovões, chuva grossa e muito vento, mas muito vento, que assobia entre as árvores da rua, entre as frestas das janelas. Ela encobriu seus gritos e o tic-tac do relógio, mas os ponteiros continuam sua marcha neurótica à volta do pino central, enfeitado com um falso diamante, que reflete nós dois, as luzes e as cores do quarto: 23 e 19. Ela permanece quieta sob mim. Abro minhas mãos e solto seu pescoço, onde ficam marcas dos meus dedos. Saio de cima dela. Atravessada na cama,  quieta, braços abertos, olhos arregalados, boca escancarada no esgar dos mortos. Arrepio-me todo, nunca vi uma pessoa morta tão perto de mim. Fujo para a janela. Chuva tamborilando na vidraça, as árvores sacodem-se como imensos espantalhos. Os pássaros, onde estão os pássaros e seus ninhos, que vi agora à tarde? Raios, trovões, um vento entra pela fresta e arrepia meus pelos. Afasto-me da janela, deus pode castigar-me, matei alguém.  Os arranhões feitos nas minhas bochechas, no meu pescoço, nos meus ombros ardem muito. Ela lutou bastante, não tive jeito. Não, teria jeito, poderia só segurá-la até ela cansar, como das outras vezes, mas o tapa dela mexeu comigo. Na minha cara ninguém bate. Ninguém!

Seus olhos estão procurando por mim. Acusam-me. Aproximo com cuidado, tenho medo de mortos. Puxo as pálpebras dela para baixo, os olhos cor de piscina somem. Meus dedos ficam sujos com a sombra dourada e marrom. Ficaram marcas digitais? Esfrego forte uma ponta do cobertor nos olhos. O que concluirá o legista desses borrões? Problema dele, que não me ache....

Ele fica um tempo indeterminado ali em pé, olhando para seu serviço. Espera ela ressuscitar? Aguarda algo, alguém, ter uma ideia? Senta-se na mimosa poltrona azul e continua olhando para ela, escutando a chuva, raios, trovões, ventos uivando, chorando, lamentando o acontecido... Como essa desgraça foi acontecer, como nosso amor terminou nisso, um corpo sobre a cama? Éramos apaixonados, loucos um pelo outro, aqui era nosso ninho, nossa alcova, muito sexo, juras de amor eterno... agora ela na eternidade, eu aqui só, no meio dessa tempestade, nessa câmara mortuária, velando minha amada...

O tic-tac do relógio desperta-o de um sono, sonho, pesadelo, mas lá está o corpo estendido na cama, braços abertos, mostrando a realidade. Ele olha o cadáver, recorda-se de antigos velórios, flores, velas, pessoas chorando, outras sussurrando, alguém contando piadas lá fora, o caixão só...

O que faço agora? A vida segue, enterra-se os mortos, cuida-se dos vivos, ensinaram-me. O que faço? Espero? Espero o quê? Quem chegará para me salvar? Não posso ficar aqui com esse corpo, devo sumir, ou sumir com ele... cortar... não, cortar não, desmaiarei no primeiro jato de sangue... talvez queimar, queimar tudo, botar fogo neste apartamento... dissolver como nos filmes de espionagem, sempre aparece alguém para cuidar da limpeza, dissolver corpos na banheira... filmes, tudo tão simples neles....

Ele se dá conta, pela primeira vez, que tem um problema, um grande problema. Um corpo com sinais de esganadura, um corpo semidespido, banhado em seu suor, pelos, sêmen, saliva, um quarto com seus fluídos e digitais, um apartamento repleto dele, sua imagem nas câmeras dos corredores, elevadores, garagem, em todas ele, sempre ele, ou ele e ela. Desespera-se.

Um cheiro forte invade suas narinas: sândalo, incenso que ainda queima sobre o criado-mudo, perfume predileto dela, para obter paz espiritual. Ele vai até a sala e volta com o buquê de reconciliação. Desfaz o arranjo e lentamente espalha as rosas sobre o corpo... Hoje estava tudo certo, você adorou as rosas, por que fez aquilo comigo? Por que brigamos? Jurei que não faria mais nada errado, ajoelhado, lembra? Beijei seus pés... Por que você me rejeitou? eu mudei, mudei, não vou fazer mais nada que você não goste, meu amor....

Ele, chorando, vai ao banheiro e retorna com vários vidros de perfume, que esparge sobre ela, gota a gota, como se fosse água benta, cada vidro, cada cheiro trazendo-lhe recordações de lugares, situações, eventos, pessoas, ela, os dois. Exausto, adormece. A claridade do belo dia de primavera o acorda. 8 e 15, ela ainda está lá, florida e cheirosa. E morta... A boca, que esquecera de fechar, parece estar gritando seu nome. Arrepia-se todo, olha para a janela, a tempestade parou, o vento é interno, vento de culpa, medo, terror. Foge do quarto, corre para a cozinha, fecha a porta, refugia-se. Bebe cerveja olhando para as roupas dela no varal... Parece que estou num filme de terror. O que faço? Não, num filme policial, preciso sumir, ou sumir com o corpo, não tenho coragem,  apagar as provas...

Revira a cozinha, esvazia gavetas, espalha panelas, talheres, quebra pratos, copos, mas sem fazer barulho. Destrói a sala, revira tudo no quarto, espalhando as roupas ao redor da cama. Separa uma saia xadrez, uma blusa amarela  bem folgada e um chapéu de aba larga. Guarda no bolso uma calcinha de renda preta. Coloca na pequena mala de viagem dela joias, dinheiro, cartões, relógios, celular, tablet, bolsas e roupas caras, sua própria roupa, trocada pelas dela. Acende todos os incensos da caixa dourada e os espalha pelo quarto. Liga o ventilador de teto no mínimo. O apartamento é total destruição. Pensa que seria melhor colocar fogo em tudo...

As câmeras do corredor, do elevador e da garagem registram que a moradora do apartamento 525 viajou de carro na terça-feira, pela manhã.

A Polícia Civil paulista prendeu o ex-namorado Fulano de tal, suspeito do crime. Os zeladores do prédio sentiram um cheiro forte vindo do 5º andar, e foram até o apartamento verificar o que estava acontecendo. Ao chegar, tocaram a campainha, mas ninguém atendeu. Eles perceberam que a porta estava destravada, entraram e encontraram o corpo na cama do quarto. Na cena do crime, as janelas estavam fechadas, havia um ventilador ligado e muitos incensos acesos. A polícia diz que o corpo tinha sinais de violência. A moradora teria morrido há pelo menos três dias. A Polícia Civil diz que ele é o suspeito da morte porque os dois tinham terminado o relacionamento há pouco tempo, e a falecida havia pedido ao porteiro do prédio que não autorizasse o homem a entrar no edifício. Na última segunda-feira, no entanto, ela permitiu que o ex-namorado subisse após ele insistir.

José FRID

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