Tarde de verão. Estou só na casa dos tios. Sala ampla, sofás de couro, piso de lajotas, uma parede de tijolos aparentes, outras caiadas de branco, porta dupla envidraçada para o jardim, muitas árvores, plantas, flores, uma colmeia de abelhas jataí encrustada no relógio de luz. Mormaço. O ventilador de teto roda monotonamente suas pás de madeira. A brisa mecânica afaga meus cabelos. Sinto-me num filme colonial inglês, a qualquer momento poderá entrar um serviçal indiano oferecendo-me acepipes típicos e bebidas geladas...
Como ele não chega, vou à cozinha: cerveja gelada, queijinho cortado em cubos, azeitonas pretas, picles, está pronta a festa. Refastelo-me no sofá, ligo a tevê. Tarde de verão. Mormaço. Cerveja gelada, acepipes, filme morno, o barulho hipnotizador do ventilador, tudo resulta num belo cochilo vespertino...
Sou despertado por tiros de canhão. Assustado, olho para o filme, é apenas uma comédia familiar. Apuro os ouvidos, tempestade de verão chegando. Sorrio, estou bem abrigado, pode chover canivetes que ficarei bem. Mas e meus tios? Preocupado, pego outra cerveja, acho torradas, passo requeijão nelas: segundo tempo, novo filme, um western do John Ford. Que venha a tempestade! E ela não se faz de rogada: despenca com todos os seus argumentos sonoros e visuais.
Concentro-me no filme, não temo tempestades, meros fenômenos naturais. Lembro-me do meu sábio tio: "Está para chover, vou deixar a porta do salão aberta, o Dick pode entrar a hora que quiser, não se preocupe com ele." O salão fica abaixo da sala, uma escada em caracol liga os dois recintos. Vou até ela e vejo um tapume de madeira bloqueando-a. Tudo tranquilo. Foco no filme, John Wayne vai enfrentar o bandidão em duelo na rua principal. Bem na hora da troca de tiros, trovões homéricos imediatamente transladam-me do Arizona para o desembarque da Normandia, dia vira noite, raios cortam o céu, bombas, morteiros, jorros d' água, vendaval, puro exibicionismo da natureza.
As abelhas já se recolheram, as plantas se vergam ao vento. Fecho a janela e a porta envidraçada. Acelero o ventilador, chove, mas o calor persiste. Num silêncio entre trovões escuto Dick no salão. Garoto esperto, recolheu-se na hora certa. Deve ter comida e bebida lá embaixo, meus tios adoram esse cara. Eu aqui, ele lá. Tranquilos. Novos barulhos da tempestade, Dick parece não estar calmo, escuto-o caminhar de um lado para outro. Será que teme a tempestade? Fico preocupado com a reação dele, com o que ele poderá fazer. A borrasca não cede, Dick fica impaciente, angustiado, nervoso, a tempestade está mexendo com ele. Fico dividido entre as cavalgadas no oeste seco e os efeitos da tempestade tropical sobre Dick. Medos. Dick com medo irracional da tempestade, eu com medo do Dick. Sim, medo do Dick. Não somos muito próximos, ele é grande, forte. Tento racionalizar a questão mas também sou dominado por um medo irracional: e se Dick conseguir subir a escada? Medos, medos irracionais de um irracional e de um aparentemente racional.
Olho pelo vão da escada: Dick tenta tirar o tapume e subir. Parece desesperado. E eu também fico, com seus latidos roucos e potentes: um pastor alemão capa preto, não adestrado, com uns cinquenta quilos! O que faço?
Tento ignorá-lo e concentrar-me no filme, mas seus ataques ao tapume e seus ganidos desesperados a cada trovão mais forte impedem-me. Poderia trancar-me na cozinha, mas não há porta. Os quartos estão trancados, mania dos meus tios, só resta o exíguo e calorento lavabo. E o jardim da entrada, expondo-me à tempestade. Olho pelo vão da escada e vejo Dick irracionalmente desesperado para subir a escada. O tapume não vai resistir ao embate! O que ele quer? Morder-me? Devorar-me? Ou a companhia de um ser racional como eu? Ele acredita que o protegerei da tempestade? Eu? Com medo dele? Não sabe de nada, o inocente. Penso em gritar por socorro, mas quem me acudiria? Como não quero que ele suba nem vou descer, preciso encontrar logo uma solução. Afinal, sou o ser racional da relação. Penso penso, lembro-me dos donos de cachorros que conversam com eles como se fossem gente e entendessem tudo que eles falam. Cada uma!
Como o meu desespero é grande, esqueço minhas críticas aos donos de cães. Sento-me à beira do abismo da escada, como Wayne no Grand Cânion, numa posição que conseguimos nos enxergar. Controlo meu temor, minha ansiedade, meu medo irracional de cães grandes e passo a conversar com ele.
"Calma, Dick, Dickinho, é só uma chuva, tá tudo tranquilo, nós estamos seguros aqui dentro, blá, blá, blá, bom garoto, Dickinho, fique calmo, eu estou aqui, blá, blá, blá," conto até o que está passando no filme. Adoto uma voz meio paternal, meio maternal, como conversasse com uma criança, como vejo os donos fazerem. Dick deixa-se envolver com minha voz, deita-se ao pé da escada, só levanta as orelhas num trovão mais forte. Eu nem pisco, nem encolho os ombros a cada estrondo mais forte, mantenho os olhos fixos nele, preciso passar confiança ao cidadão canino, ser racional tem suas vantagens.
"Tudo passa, tudo passará ..." cantava Nelson Ned e com a tempestade não foi diferente. Os aliados conseguiram desembarcar na Normandia e Wayne pacificou a cidadezinha. O sol volta a brilhar, Dick vai para o quintal e eu vou buscar outra cerveja, garganta seca de tanto falar com um cachorro!
José FRID
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