terça-feira, 1 de março de 2016

MEDOS


Tarde de verão. Estou só na casa dos tios. Sala ampla, sofás de couro, piso de lajotas, uma parede de tijolos aparentes, outras caiadas de branco, porta dupla envidraçada para o jardim, muitas árvores, plantas, flores, uma colmeia de abelhas jataí encrustada no relógio de luz. Mormaço. O ventilador de teto roda monotonamente suas pás de madeira. A brisa mecânica afaga meus cabelos. Sinto-me num filme colonial inglês, a qualquer momento poderá entrar um serviçal indiano oferecendo-me acepipes típicos e bebidas geladas...

Como ele não chega, vou à cozinha: cerveja gelada, queijinho cortado em cubos, azeitonas pretas, picles, está pronta a festa. Refastelo-me no sofá, ligo a tevê. Tarde de verão. Mormaço. Cerveja gelada, acepipes, filme morno, o barulho hipnotizador do ventilador, tudo resulta num belo cochilo vespertino...

Sou despertado por tiros de canhão. Assustado, olho para o filme, é apenas uma comédia familiar. Apuro os ouvidos, tempestade de verão chegando. Sorrio, estou bem abrigado, pode chover canivetes que ficarei bem. Mas e  meus tios? Preocupado, pego outra cerveja, acho torradas, passo requeijão nelas: segundo tempo, novo filme, um western do John Ford. Que venha a tempestade! E ela não se faz de rogada: despenca com todos os seus argumentos sonoros e visuais.

Concentro-me no filme, não temo tempestades, meros fenômenos naturais. Lembro-me do meu sábio tio: "Está para chover, vou deixar a porta do salão aberta, o Dick pode entrar a hora que quiser, não se preocupe com ele." O salão fica abaixo da sala, uma escada em caracol liga os dois recintos. Vou até ela e vejo um tapume de madeira bloqueando-a. Tudo tranquilo. Foco no filme, John Wayne vai enfrentar o bandidão em duelo na rua principal. Bem na hora da troca de tiros, trovões homéricos imediatamente transladam-me do Arizona para o desembarque da Normandia, dia vira noite, raios cortam o céu, bombas, morteiros, jorros d' água, vendaval, puro exibicionismo  da natureza.

As abelhas já se recolheram, as plantas se vergam ao vento. Fecho a janela e a porta envidraçada. Acelero o ventilador, chove, mas o calor persiste. Num silêncio entre trovões escuto Dick no salão. Garoto esperto, recolheu-se na hora certa. Deve ter comida e bebida lá embaixo, meus tios adoram esse cara. Eu aqui, ele lá. Tranquilos. Novos barulhos da tempestade, Dick parece não estar calmo, escuto-o caminhar de um lado para outro. Será que teme a tempestade? Fico preocupado com a reação dele, com o que ele poderá fazer. A borrasca não cede, Dick fica impaciente, angustiado, nervoso, a tempestade está mexendo com ele. Fico dividido entre as cavalgadas no oeste seco e os efeitos da tempestade tropical sobre Dick. Medos. Dick com medo irracional da tempestade, eu com medo do Dick. Sim, medo do Dick. Não somos muito próximos, ele é grande, forte. Tento racionalizar a questão mas também sou dominado por um medo irracional: e se Dick conseguir subir a escada? Medos, medos irracionais de um irracional e de um aparentemente racional.

Olho pelo vão da escada: Dick tenta tirar o tapume e subir. Parece desesperado. E eu também fico, com seus latidos roucos e potentes: um pastor alemão capa preto, não adestrado, com uns cinquenta quilos! O que faço?

Tento ignorá-lo e concentrar-me no filme, mas seus ataques ao tapume e seus ganidos desesperados a cada trovão mais forte impedem-me. Poderia trancar-me na cozinha, mas não há porta. Os quartos estão trancados, mania dos meus tios, só resta o exíguo e calorento lavabo. E o jardim da entrada, expondo-me à tempestade. Olho pelo vão da escada e vejo Dick irracionalmente desesperado para subir a escada. O tapume não vai resistir ao embate! O que ele quer? Morder-me? Devorar-me? Ou a companhia de um ser racional como eu? Ele acredita que o protegerei da tempestade? Eu? Com medo dele? Não sabe de nada, o inocente. Penso em gritar por socorro, mas quem me acudiria? Como não quero que ele suba nem vou descer, preciso encontrar logo uma solução. Afinal, sou o ser racional da relação. Penso penso, lembro-me dos donos de cachorros que conversam com eles como se fossem gente e entendessem tudo que eles falam. Cada uma!

Como o meu desespero é grande, esqueço minhas críticas aos donos de cães. Sento-me à beira do abismo da escada, como Wayne no Grand Cânion, numa posição que conseguimos nos enxergar. Controlo meu temor, minha ansiedade, meu medo irracional de cães grandes e passo a conversar com ele.

"Calma, Dick, Dickinho, é só uma chuva, tá tudo tranquilo, nós estamos seguros aqui dentro, blá, blá, blá, bom garoto, Dickinho, fique calmo, eu estou aqui, blá, blá, blá," conto até o que está passando no filme. Adoto uma voz meio paternal, meio maternal, como conversasse com uma criança, como vejo os donos fazerem. Dick deixa-se envolver com minha voz, deita-se ao pé da escada, só levanta as orelhas num trovão mais forte. Eu nem pisco, nem encolho os ombros a cada estrondo mais forte, mantenho os olhos fixos nele, preciso passar confiança ao cidadão canino, ser racional tem suas vantagens.

"Tudo passa, tudo passará ..." cantava Nelson Ned e com a tempestade não foi diferente. Os aliados conseguiram desembarcar na Normandia e Wayne pacificou a cidadezinha. O sol volta a brilhar, Dick vai para o quintal e eu vou buscar outra cerveja, garganta seca de tanto falar com um cachorro!

José FRID

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