terça-feira, 23 de agosto de 2016

O BÊBADO

Já vomita no mar a lua pálida.
Bondes trazem de longe a madrugada
E entre golfos de sombra resplandecem
Fantásticas piscinas de luz crua.
Os ruídos do dia vão nascendo
Da noite que abandona o céu. Tilinta
Real a campainha de um ciclista,
Dobra irreal o sino de um convento.
A própria luz a caminhar cicia
Nos trilhos azulados da manhã.
A espaços, o silêncio coagula
O soturno alarido da ressaca.
O bêbado caminha em direção
De um luzir qualquer no lusco-fusco,
Onde grita a luz fulva dos açougues.
Do mais alto beiral nasce uma pomba
Que voa rente ao asfalto orvalhado,
Ensurdecendo a claridade triste
Do bêbado. Do esforço alvar das vagas
Nascem as gaivotas tresnoitadas.
Cavalos mal dormidos vão surgindo
Nas esquinas, enquanto os operários
Passam numa cadência primitiva.
O bêbado quer morrer, de desfazer,
Andando sem vontade sobre a terra
Que oferece a seus pés o espaço hostil.
Seu ideal é simples, geométrico,
E o sorriso em que fala ao transeunte
É um sorriso de paz e de ironia.
Nós que andamos certos e orgulhosos na manhã
E nos apossamos do dia como nosso território natural,
Como entenderemos este ser obscuro
Cujos passos se extraviam e se afastam de nós
E se aproximam de novo e se perdem em atropelo.
Quando seu rosto se inclina para o chão
E outra vez se levanta com um sorriso de paz e de ironia,
Sentimos uma luz de mentira em seus olhos
E tontos de lucidez nos disfarçamos.

Paulo Mendes Campos

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