domingo, 20 de novembro de 2016

Do Diário de alguém que não nasceu e outras histórias - Isaac Bashevis Singer



Esse é considerado o livro de contos mais famoso de Isaac Singer, Em inglês foi publicado em 1957 com o título "Gimpel the fool", que é o primeiro conto da coletânea, permitindo que os americanos pudessem conhecer os textos do autor, que só escrevia em ídiche, apesar de morar na América desde 1935. Ele alegava que a língua era a melhor para representar o mundo que conheceu na Polônia no início do século passado, a cultura judaica na qual foi criado.

Li esse livro depois de ter lido o seu livro de memórias "Amor e Exílio", que aborda a fase inicial da sua vida, da infância, adolescência e início da vida adulta na Polônia até os primeiros anos na Nova York nos primórdios da Segunda Guerra Mundial. Nesse livro ele fornece uma visão ampla de como os judeus viviam na Polônia, em Varsóvia e nas cidades pequenas do interior, a maioria levando uma vida muito regrada pela religião, com forte presença dos rabinos, quase à parte da vida cotidiana polonesa, Como mencionado em outro livro do autor, um povo tendo a vida imersa num 'esplendor medieval", com suas proibições e superstições ligadas às suas tradições milenares, povo eleito à espera do Messias, precavendo-se contra demônios, diabretes e outros seres malignos, tendo que lidar com a vida moderna, em bruscas transformações políticas, sociais, sexuais, tecnológicas, etc. Um povo e um mundo extinto com Hitler, Stálin e suas atrocidades.

Essa leitura anterior preparou-me para compreender as temáticas dos onze contos, todos com personagens vivendo exclusivamente conforme os ditames da religião judaica, obedecendo seu calendário de festas, rezas, proibições, etc. Como convivessem com os antepassados bíblicos, com demônios, diabretes e outros seres malignos, , Estavam na Polônia mas poderiam estar em qualquer outra cidadezinha européia, onde pudessem viver isolados com seus preceitos. Os textos são deliciosos, com muitas descrições das cidades, das casas, da vida local, dos cultos religiosos, do comportamento de cada personagem, de seus pensamentos, etc., levando o leitor a sair da sua vida cotidiana e emergir na comunidade judaica polonesa do início do século vinte. Uma grande ficção!

Desses onze contos destaco três: Os pequenos sapateiros, À luz das velas sagradas e Do Diário de alguém que não nasceu, que denomina a edição brasileira.

"Os pequenos sapateiros" é um conto delicioso e emocionante que revela a vida de uma família judia de sapateiros de muitas gerações, onde os primogênitos mantinham a tradição, exercendo a profissão familiar e permanecendo na cidade natal de seus antepassados. Tudo corria bem, estável, até que o primogênito da última geração polonesa contesta a tradição familiar, as tradições religiosas, a vida tacanha na pequena cidade, etc. comunicando ao pai que irá partir para a América, que acata a decisão do filho e põe na mão de Deus o destino de todos. Pouco a pouco os sete filhos vão abandonando a Polônia rumo à América, a mulher morre, a cidade é destruída - tempos de guerras - e o pai, já idoso e procurando manter suas crenças, cruza meio mundo para se encontrar com os filhos. Emocionante. Verti lágrimas...

Na "Á luz das velas sagradas" há um encontro noturno de mendigos, na "casa de estudos",  em volta de uma estufa para se aquecerem. Um deles, antigo coveiro, narra as desventuras de sua profissão, culminando com os fatos que o levaram a abandonar a profissão e a cidade, seguindo a vida de mendigo errante.

"Do Diário de alguém que não nasceu" narra as atividades de "alguém não nascido", resultado de uma homenagem a Onan feita por um estudante do Talmude, se é que vocês me entendem, criando um ser "meio espírito, meio demônio, meio ar, meio sombra", que "existe e não existe", um diabrete que perturba os vivos e os desvia do bom caminho, procurando evoluir na sua carreira de diabo. São dois casos de sua atuação, ambos com sucesso no arrebatamento de almas para Asmodeu e Lilith. Não queira ter um desses na sua vida!

"O Ancião" é o conto mais antigo da coletânea, publicado na Polônia em 1933. Ele aborda a saga de um nonagenário para sobreviver na Polônia invadida pelos alemães, primeiro em Varsóvia, onde vê morrer, na guerra e depois por doenças, toda a sua família,  e em seguida pelas cidadezinhas do interior até conseguir chegar numa pequena cidade da Áustria onde é recebido pela comunidade judia local, estabelecendo-se, casando-se e tendo filho como Abraão.

"Gimpel o Pateta", que denomina a edição original americana, conta a estória de uma pessoa que não se considera boba, mas assim é considerada por todos. Bobo, tolo, burro, imbecil, palerma, etc., todos o enganam e ele acredita em tudo que lhe dizem. A mulher o trai com todos e diz que os filhos são deles, só confessando a traição no leito de morte. Difícil 

"O fidalgo de Cracóvia" é a estória de uma cidade pobre e falida que se deixa envolver pelas riquezas de um forasteiro, concordando em quebrar as leis religiosas para alcançar benefícios, sossobrando em pecados, demônios, etc.

"O Mata-Mulheres" narra a vida de um homem que sobrevive às suas mulheres, ficando cada vez mais rico,  até que topa com uma que quase consegue enterrá-lo.

"O espelho" é uma estória de um diabrete que mora num espelho e consegue seduzir uma dama da sociedade e induzi-la à seguir com ele para um mundo desconhecido, o da perdição.

"Alegria" é sobre um rabino que perde a filha  e tem crise com sua fé.

"Fogo" conta a estória de um homem que briga com seu irmão bem sucedido e que resolve tocar fogo na casa dele, mas quando chega lá vê que ela já pega fogo. Ele salva a família do irmão, mas é acusado de provocar o incêndio.

"O homem invisível" é um conto sobre o amor, as tentações e o amor que a tudo resiste.

As curtas descrições acima não permitem mostrar o sabor da escrita de Singer, o entrelaçamento da vida cotidiana com os preceitos religiosos, o detalhe da vida em Varsóvia e nas pequenas cidades da Polônia no início do século passado. Um destaque: os correios funcionavam! As cartas e publicações cruzavam os continentes e oceanos, por trens, navios, charretes, superando distâncias e obstá-los.


Vale a pena a leitura! (Agora estou começando a ler "Sosha", que Singer considerava seu favorito)


José FRID

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