sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Eu e o poeta que se vai...



Ferreira Gullar morreu aos 86 anos, no dia 4 de dezembro passado, um domingo, dia do aniversário de outro poeta que admiro, Cláudio Willer. A causa da morte seria uma pneumonia, após internação de 20 dias para tratar de problemas pulmonares, decorrentes de logo período de tabagismo. O que me chamou a atenção, além da morte em si do grande poeta maranhense, foi a divulgação de seus últimos desejos, suas últimas palavras. 

Às vésperas de morrer, consciente da gravidade de seu estado, Gullar recusou a opção que lhe ofereceram de prolongar sua vida artificialmente por meio de aparelhos. Respondeu que preferia abreviar o seu fim. Impressionado com a decisão, o médico confessou que nunca vira tanta coragem e lucidez assim. Ele, lúcido, teria dito para a mulher: "Não deixe me colocarem em aparelhos. Não prolonguem meu sofrimento, que me deixem morrer em paz. Se você me ama, não deixe fazerem nada comigo. Me deixe ir em paz. Eu quero ir em paz". 

Essa vontade ele manifestou também para sua filha Luciana, que tentou confortar argumentando que tivera uma vida muito digna e não queria prorrogá-la sabendo que seria por pouco tempo. No domingo final, teria pedido para a sua filha: "Luciana, tudo isso é inútil. Me leva para Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora". Um final digno de figurar no 'Poema sujo', como destacou um escritor amigo dele. 

Na ocasião da morte de Gullar, eu estava começando a ler seu livro "Barulhos", publicado em 1987, com poesias dos anos oitenta, quando ele tinha cinquenta e poucos anos, um garoto. A leitura revelou-se de uma total sincronicidade com a morte do poeta. 

A primeira coincidência é que o livro abre com o poema "Tanga", no qual narra o impacto sensual de uma jogadora de frescobol sobre os banhistas, ele inclusive, na altura da Rua Farme de Amoedo, na Praia de Ipanema, logo onde, nas suas últimas palavras, ele quer entrar no mar e ir embora... 

A outra coincidência é que muitos dos poemas do livro abordam a morte sob vários aspectos, morte do próprio poeta, morte de seus amigos, como é viver sem eles, como viverão sem ele.... 

Gullar pergunta: "Mas e os mortos, onde estão? O Vinícius, por exemplo, e o Hélio? a Clarice? Não quero que me respondam. Pergunto apenas, quero apenas fundamente perguntar." Ele é informado que a Clarice morreu e, depois, no banheiro, lavando as mãos, especula que "lavava eu as mãos já num mundo sem ela / E água e mãos já num mundo sem ela / e água e mãos eram um enigma de sensações e lampejos ali na pia / É que a morte revela a vida aos vivos?" 

Num dia de sol, o poeta, ao passar pelo cemitério de Botafogo pega-se lembrando dos falecidos Vianinha, Paulinho e Armando Costas, mencionando-lhes que "quase escuto vocês aí dentro / falando e rindo / debaixo deste sol", que "deve ser bom estar assim entre amigos / livres das aporrinhações da vida / a olhar as nuvens / e os passarinhos / que por aí / passarinham", querendo saber sobre o que conversam: "do CPC? do Opinião? do futuro / da Nova República? / ou simplesmente flutuam / como os ramos / ao fluxo da brisa?". Surpreso, indaga-se: "E pode um marxista admitir / conversa entre defuntos? / Não é a morte o fim de tudo?", respondendo-se que "- É claro, digo a mim mesmo, é claro – / e sigo em frente", "mas dentro da minha alegria / os três amigos continuam a conversar e rir / nesta manhã brasileira / que torna implausível a escura morte". 

Aos cinquenta e dois anos, o poeta registra que "Impõe a idade que me torne / um poeta provecto./ Voltar ao soneto / quem sabe ao solene / verso alexandrino." Poeta provecto aos 52 anos? Mal sabe ele que viverá trinta e poucos anos mais, sempre jovem, produtivo, sem precisar apelar a sonetos e versos alexandrinos. Profético, nessa idade "de repente / sabe que vai morrer". "Com o paletó na mão / dirige-se ao quarto. / Não vai morrer hoje / nem amanhã talvez apenas sabe / a verdade-lâmina / que sempre soube / e lhe esplende na carne: vai / morrer". Como todos nós, é claro, uns mais cedo, outros mais tarde, mas todos viraremos pó. O corpo, pó. Aquele que não fica indiferente ao tempo, "é que o corpo se cansou / de ser enigma / e quer / a qualquer preço virar / discurso antológico?" Mas "o teu corpo muda / independentemente de ti. / Não te pergunta / se deve engordar." Não se engane, "num relance, achas / que apenas estás / nesse corpo. / Mas como, se nele / nasceste e sem ele não és? / Ao que tudo indica / tu és esse corpo / - que a cada dia / mais difere de ti." 

O poeta provecto com 52 anos, tão jovem, "e até já tens medo / de olhar no espelho: / lento como nuvem / o rosto que eras / vai virando outro." Detrás do rosto, ele "acho que mais me imagino / do que sou / ou o que sou não cabe / no que consigo ser / e apenas arde / detrás desta máscara morena / que já foi rosto de menino." Alerta que "não quero assustar ninguém. / Mas se todos se escondem no sorriso / na palavra medida / devo dizer / que o poeta gullar é uma criança / que não consegue morrer / e que pode / a qualquer momento / desintegrar-se em soluços." A dúvida surge: "Mas quem morre? / Quem diz ao teu corpo – morre – / quem diz a ele – envelhece – / se não o desejas, / se queres continuar vivo e jovem / por infinitas manhãs?" Enquanto o momento último não chega, o poeta reconhece que "só disponho de meu corpo / para operar o milagre / esse milagre / que a vida traz / e záz / dissipa às gargalhadas." 

Chegada a sua hora, Gullar diz que "eu deixarei o mundo com fúria ./ Não importa o que aparentemente aconteça, / se docemente me retiro." Antevê que os amigos e familiares farão de tudo para salvá-lo: "Num alarido de gente e ventania / olhos que amei / rostos amigos, tardes e verões vividos / estarão gritando a meus ouvidos / para que eu fique / para que eu fique", mas ele diz que "Não chorarei. / Não há soluço maior que despedir-se da vida." 

Ele se vai, mas ilumina nossa existência: "Pode você calcular quantas toneladas de luz / comporta / um simples roçar de mãos? / ou o doce penetrar / na mulher amorosa?" Vai Gullar, vai em paz ser gauche na vida.... 

José FRID

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