quinta-feira, 20 de abril de 2017

Cachorrinho alado...

Praça do Patriarca, entardecer. Praça asfixiada por monstrenga cobertura metálica branca. No que restou, algumas árvores e sob elas celulares usufruindo de internet grátis. No trecho descampado, a estátua do homenageado, postes, lixeiras, pombos e ela. Ela e seus pertences. Os pedestres, que passam apressados pelas bordas da praça a caminho de casa, quase não percebem o Patriarca, em seu pedestal, e ela, à sua sombra, que se confunde com um amontoado de trastes. E ignoram a doce pomba a seus pés.
                                         
Ela chegou à praça arrastando um enorme saco plástico branco na mão esquerda e uma bolsa velha na direita, retendo colchonete, cobertores e travesseiro na axila. Escolhido o local, apoiou o saco no chão, empilhou o restante e acomodou-se sobre a pilha. Instalada, retirou da bolsa um embrulho e passou a comer/roer um pão/biscoito/bolacha, ali, no meio da praça, deixando cair miríades de fragmentos em sua saia comprida muito gasta.

Um pombo desgarra-se do grupo em volta da lixeira e vem vê-la comer. Ouvira o ruído da comilança dentro da balbúrdia citadina? A ave aproxima-se com passo firme, pata a pata, caminhando no seu característico gingado e meneio de cabeça, com seus olhos que nunca veem a mesma coisa, no mesmo momento, o que lhe dá ares de desconfiada, de temerosa, cuidadosa. Parece até que cada olho interpreta o mundo de forma diferente. Cérebro de pombo...

A mulher vê o bichinho e sacode as migalhas em sua direção, incentivando-a aproximar-se. Ele corre afoito para os farelos, come rápido, bicando entre as pedras portuguesas, com um olho na comida, outro nos rivais companheiros alados, alternando-os com a mulher e os pedestres que insistem em penetrar no paraíso dos dois. A mulher admira a roupagem da pomba, só pode ser uma pomba, com suas cores de vira-lata, cinzas, pretos, brancos, beges, marrons, listras, salpicados, tudo junto e misturado, pescoço e cabeça escuros, com matizes verdes, azuis  e roxos, olhos amarelos circundados por faixa vermelha.

Encantada com a ave, suas cores, porte, movimentos, quem sabe com a sua independência, liberdade, domínio do espaço, coragem, e por que não dizer sensibilizada pela solidão e penúria de ambas, a mulher resolve compartilhar sua refeição com tão nobre espécime animal, destinando a ela pequenos bocados do acepipe. A ave, grata, passeia aos pés da moça, ao alcance das suas mãos, confiante na nova amizade, evoluindo como fosse um cachorrinho.

Atravesso perto da lixeira. Os pombos, considerando-me um cidadão em quem não podem confiar, alçam voos para todos os lados da praça. A pomba, desperta pelo alarido dos companheiros, repara em mim, encarando-me com um olho, depois com o outro, voltando ao primeiro olho e logo baixando a cabeça em direção ao seu repasto. Confiara em mim ou despreza-me? A senhora sua parceira nem se dá ao trabalho de olhar-me, continuando sua faina de matar sua fome e a da amorosa canina ave de estimação...

José FRID

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