quinta-feira, 29 de junho de 2017

O desejo e a Globo

Enterrado em sua poltrona de couro, ele olha embevecido para as imagens da mocinha da novela, o sucesso do momento. Não perde um movimento dela, tenta absorver tudo: um meneio de mão, o jogar dos cabelos, o sorriso, o movimento do vestido, a sombra dos seios no tecido, os dois palmos de pernas acima das botinhas pretas, os olhos brilhando quando vê o amado chegar, seu caminhar pela sala, a voltinha junto à janela, o amuo fingido, puro charme, a boquinha se mexendo ao pronunciar doces palavras para... não era para ele, mas para o outro. "Desgraçada", grita, socando o braço da poltrona e interrompendo sua masturbação mental. Sua voz é absorvida pelas cortinas pesadas, os tapetes espessos, as estantes abarrotadas de livros com belas encadernações, os quadros, as fotos do pai ao lado da tevê. Entra o intervalo comercial, seu anúncio aparece, ótimo. Ergue os olhos para o pai e escuta-o.

- Então, meu filho, cresça e apareça. A medida do seu sucesso será ter a atriz que quiser, como eu tive. Que sua mãe não saiba, e sua mulher também.
- Mamãe não sabia, não desconfiava?
- Saber não sabia, sempre fui discreto, seja também, meu filho. Desconfiar sim, a imprensa especulava, insinuava, tive até que pagar uns e outros. Dinheiro mesmo ou comprando anúncios. O poder do anunciante, meu filho, o poder...

Ele fixa os olhos na foto do pai com uma atriz de sucesso, ela divina e maravilhosa, ele com um sorriso matreiro de patrocinador esperto, dono de muitas lojas, agora suas, como aquele escritório, a poltrona, tudo. Só a televisão era nova, oitenta polegadas, 12K. Amuado, explica-se ao progenitor.

Cresci e apareci, papai. Estou muito melhor que você, por todos os indicadores econômicos e financeiros, menos um, o da sua atriz da Tupi. Outros tempos, papai, só uma montanha de dinheiro não resolve mais. A mocinha está lá, quero-a, mas meu dinheiro não a compra. Não agora. Daqui a alguns anos com certeza poderei tê-la, mas eu é que não vou querer, desejarei outra, outra será a medida do meu sucesso. A culpa não é minha, pai, a culpa é do mercado, dos outros anunciantes, empresas sem dono, que não sabem exigir seus direitos. A emissora ficou tão forte, pai, que pode pagar bem para suas estrelas. No seu tempo é que era bom, papai, você é que pagava diretamente a elas, o poder era seu, agora é dos diretores da Globo. E as mocinhas agora querem mocinhos, colegas de trabalho, cantorzinhos, essa fauna. No seu tempo, pai, elas queriam homens, homens bem sucedidos, ricos, poderosos como eu e você. Papai, você nasceu na hora certa, eu dei azar. No teatro ainda tenho força, na música também, só botar uns patrocínios que vai tudo bem, tenho quem quero. Mas quero ela, a estrela da Globo, pai, como você tinha a da Tupi. Tá difícil, os diretores da Globo pegam todas, casam até. Como posso concorrer, pai? Acabo só pegando segundo escalão ou as mais passadas.

A novela recomeça, ele pede licença para o pai e presta atenção na tevê. A mocinha não aparece, ele fica acompanhando o enredo com pouco interesse, a cabeça vai enchendo-se de ideias... Viciara em novelas por causa do seu trabalho de acompanhar a veiculação de seus anúncios. O que era um fardo virou a parte mais agradável do dia. Cada novela, uma paixão por uma atriz, mas... olha para o pai a procura de auxílio...Sim, pai, vou ter que comprar a Globo, papai!

José FRID

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