sábado, 14 de outubro de 2017

O menino, a bike e os macacos

O sonho dos meninos da pequena cidade perdida nas montanhas mineiras era ir de bicicleta para a escola: mochila nas costas, capacete gomado, vento passando pelos cabelos, zumbindo pelos ouvidos ...liberdade, liberdade!

A maioria não podia realizá-lo pela falta de condições de seus pais em adquirir uma, mesmo usada, depauperada, o primeiro de muitos sonhos frustrados ao longo da vida. Outros herdavam uma bike surrada, que as bicicletarias arrumavam por pouco dinheiro. Muitos dividiam as duas rodas com irmãos: um dia pedestres, noutro ciclistas. Poucos tinham a sorte de receber uma novinha, metais brilhando, pneus lustrosos, o inesquecível cheirinho de  carro novo.

Natal. Da grande caixa salta uma reluzente bicicleta, toda equipada, milhares de marchas, banco de silicone, amortecedores, freios a disco. Os pais e os irmãos mais velhos tinham cotizado para agradar ao menino, mas na verdade presenteavam-se a si mesmo com o brinquedo, sonho deles agora realizado. Eles tentam levar nosso herói para estrear a bicicleta, antevendo e saboreando as alegrias dele ao sair pedalando. Bradam que o menino nem vai precisar das duas rodinhas, aprenderá logo com a experiência deles: uma queda ou outra, e ele já estará rodando pela cidade, dando inveja aos garotos e atraindo a atenção das mocinhas. O menino, atemorizado, alega que machucara a perna num jogo de futebol, comera muito... Os adultos esquecem-no e, sob o efeito de eflúvios alcoólicos, passam a relembrar animadamente suas experiências ciclistas, deliciosas histórias de passeios, quedas, amores, competições...

Na manhã seguinte, o menino acorda cedo e escapa para a rua, para o lago, evitando a pressão dos familiares, que logo irão embora. Está aterrorizado, teme o veículo como a uma fera. Ouvira as histórias, parecia-lhe que todos nasciam sabendo andar de bicicleta, menos ele, é claro; todos caiam, sacudiam a poeira e seguiam em frente, mesmo com sangramentos, fraturas...

O carnaval chegou e a bicicleta permanecia na garagem, montada com as rodinhas auxiliares. Ele até tentara dominá-la, mas sempre caía no quintal antes de chegar ao portão da rua.  Ora desequilibrava e capotava, a bicicleta caindo sobre ele, ora prendia o pé na corrente, quando não acontecia do guidão fechar e esmagar seu joelho, sem contar as vezes que a bicicleta simplesmente o cuspia, qual touro xucro. Ainda era um pedestre, um mísero e desprezível pedestre, que tinha que acordar mais cedo por ter que ir andando para a escola, e não voando sobre duas rodas como sempre sonhara...
E com o carnaval chegara um pequeno circo á cidade. Bandinha, pôneis, palhaços, cães dançarinos, trapezistas, um cansado elefante, um mágico, macacos amestrados, tigres, malabaristas, leões, homem-bala. Estreia no sábado, logo depois da matinê carnavalesca do Clube Lítero-musical.

A garotada fantasiada enche as arquibancadas. Enquanto a função não começa, voam serpentinas e confetes. O proto-ciclista, de índio, tenta chamar a atenção de uma sapeca havaiana. Os palhaços fazem sucesso, os cãezinhos só encantam os menorzinhos. Os trapezistas causam frisson na plateia, impressionada com os saltos mortais. O elefante e o mágico são um fracasso.

Intervalo, o índio consegue oferecer pipoca para a havaiana, que ainda bebe do refrigerante dele, no mesmo canudo, um beijo indireto. Ele, enlevado, nem presta atenção na entrada dos macacos uniformizados, só tem olhos para os dentinhos havaianos trincando os brancos grãos de pipoca. As macaquices da pequena tropa agradam à plateia, que ri e aplaude, comportamento repetido pelos animais, que guincham, batem as mãos e escancaram os lábios e dentes. Ele feliz com a alegria dela, como fosse o responsável por isso. Os animais saem do picadeiro junto com os domadores, mas a música da bandinha indica que retornarão para um número final. Ele só de olho nela...

- Olhe!

Ele olha para onde ela indicara: bicicletas! Macacos andando de bicicleta! Macacos! E sem rodinhas auxiliares! Ele fica estupefato: macacos de bicicleta!

Eles parecem provocá-lo: correm por todo o picadeiro, sobem pranchas, pulam pequenos obstáculos, um deles anda até sem as mãos no guidão. Vergonha! Vergonha! Vergonha! Cobre seu rosto, tem a impressão de que toda a plateia compara-o com os símios, ri dele e não das macaquices. Foge!

Sábado de carnaval. Noite. A garagem está iluminada. Um índio encara seu desafio. Macacos! Macacos! Ele, um homem! Circula em volta da perigosa máquina, mas sua mente está no picadeiro, nos primatas dando voltas ousadas, sorrisos nos rostos, desfrutando da brincadeira. Ele conseguirá!

Dias entre a garagem e o quintal. Mãos e joelhos esfolados, pernas com hematomas, cotovelos também. Marcas dentadas em pés e mãos. A bicicleta já não está mais intacta: arranhões, mossas, raspados maculam o azul metálico.

Quarta-feira de cinzas, seis horas da manhã. A cidade descansa dos excessos carnavalescos. O portão do quintal é aberto. Uma roda surge, um guidão, pedais, selim, outra roda. E o menino, olhar posto no horizonte, desbravador das montanhas mineiras. Sem testemunha, ele senta no selim, ajusta os pedais e parte, segue sem olhar para trás, o vento zumbindo nas orelhas...

Semana Santa, a família novamente reunida, um garoto não para de circular de bicicleta, sobe e desce calçadas, pula lixeiras, corre e freia em cima das pessoas, pedala sem as mãos no guidão, empina a bicicleta  na roda traseira, na  dianteira, coloca as pernas para cima, pedala em pé ...

- Para com as macaquices, filho!

José FRID

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