segunda-feira, 19 de março de 2018

A vida como ela não é....

Sim, a vida como ela não é.

O pior cego é aquele que não quer usar lentes de contato - e, como eu vi o caso, o caso eu conto como o caso foi:

em frente a um bar da Rua Hipólito da Costa esquina com Viveiros de Castro (gosto de situar o real), um homem de uns 24 anos e de "cor parda" (como dizem os jornais) deu oito tiros num companheiro de calçada, de uns 20 anos, também de "cor parda", cabelos encaracolados (ele tinha "naturally curled hair", como a pequena personagem dos Peanuts) e que morreu na hora. O assassino?  Ninguém sabe, ninguém viu - evaporou-se. Caso dois: o pior cego é aquele que enxerga demais e não ouve. Tardes depois, um pivete roubou um casal de turistas na Avenida Atlântica (a situação é onde a ação se situa) e saiu correndo e um carro do ano que vinha em direção contrária e que não tinha nada a ver com a história (vá se acostumando, provável leitor: conosco ninguém podemos e quase nada tem a ver com a história) parou de estalo e um cidadão bem-vestido desceu já com um revólver na mão e disparou três tiros no moleque que se estatelou no calçadão de design português, com pedras escuras e claras em forma de ondas simétricas - e o distinto e desconhecido cidadão ou sujeito voltou para o carro e sumiu, com a sensação - who knows? - de dever cumprido.

Apenas duas cenas da morte urbana: a realidade bate todo à sua porta, em volta de seus ouvidos moucos e... míopes: a cidade engole o grito dos assassinados e a consciência dos assassinos: a realidade bate à sua porta - fechada.

Era o que eu não tinha a dizer.

Flávio Moreira da Costa in O equilibrista do arame farpado, Record, pág.18




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