segunda-feira, 23 de abril de 2018

Na hora do chá....

Manhã, ela sai do Metrô  a caminho do trabalho, desviando de corpos dispersos pelo Vale do Anhangabaú. Mortos? Espera que apenas durmam, mesmo aquele enrolado em mortalha branca e o outro que parece um monte de lixo. Rente à banca de jornal, um corpo sobre papelão emula a Estátua da Liberdade, uma mão junto ao tórax, a outra esticada, da qual roubaram a tocha que guia os desvalidos do mundo, muitos daqueles que se espalham ali pelas calçadas, pelos canteiros dos jardins, sob as marquises, à porta das lojas.
Ela sobe a rua Capitão Salomão pensando como as pessoas conseguem dormir serenos em suas casas, sabendo de tantos ao relento. O coração é seletivo: emociona-se com os desabrigados pela guerra na Síria, pelas enchentes  no México e por terremoto na Índia, vistos pela tevê ou na internet, mas apenas provoca desvio, num passo duro, daqueles caídos aqui, ali, no Largo do Paissandú, tão próximos, tão reais, que ferem nossas narinas e nossos olhos.
A rotina de trabalho a absorve, os desvalidos caem num desvão mental. Na hora do almoço, passeia tranquila, os corpos já retomaram suas atividades, batalham pela sobrevivência, para existirem por mais um dia, por uma noite mais.
Cinco horas da tarde, ainda claro. Hora do chá em Londres, hora dela voltar ao lar. Ela repisa o caminho da manhã, agora sem corpos, os desvalidos ainda transitam pelas ruas e praças, a batalha continua, a dura noite é próxima.
Ela cruza o Largo, entra na Salomão, vê ao longe um furgão estacionado. Aproxima-se do veículo, ao lado dele, um saco preto, dentro dele um corpo, este imóvel, olhos fechados, rosto crispado num esgar de despedida. O coração aperta, lágrimas não saem, ela segue para o Metrô, o importante é existir, ao menos mais um dia, por mais uma noite.
Outra semana, mesmo horário vespertino, mesmo local, outro saco escuro, outro corpo, também imóvel, olhos esbugalhados, surpresos com a saída antecipada.
Cinco horas no centro de São Paulo não é hora do chá, mas hora do rabecão.
Ela não anda mais de Metrô, prefere o ônibus à porta de casa, à porta do escritório. (Os corpos, vivos ou mortos, estão lá, mesmo que ela não os veja....)
José FRID

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