terça-feira, 1 de maio de 2018

Episódio do inimigo

Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão-somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava:  a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tanto anômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem despencasse dali; porém, deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deveriam ser quatro horas da tarde.

Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse:

- A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmo - disse -, porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele havia desabotoado o sobre tudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Apontava-me algo, e senti que era um revólver.

Disse-me, então, com voz firme:

- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer:

-É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.

-Precisamente porque já não sou aquela criança - replicou - é que tenho que matá-lo. Não se trata de vingança, mas sim de um ato de justiça. Seus argumentos,Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.

- Posso fazer uma coisa - respondi.

- Qual?

- Acordar.

E assim o fiz.


Jorge Luis Borges in Livro dos Sonhos, págs.147/148

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